Tuesday, February 24, 2009

Um Medo Frio - Breve nota sobre a memorialística castriana (1)

Artigo publicado em Sol XXI, n.º 38/39, Carcavelos, 2003
Escrever as memórias pressuporia à partida uma existência fora do comum para o comum dos mortais. Pelo que se viveu e testemunhou, pelas teias relacionais que ao longo da vida se foram forjando. Jaime Cortesão, por exemplo, transpôs para as Memórias da Grande Guerra (1919) o seu muito próprio estilo épico, num tema que só por si se prestava às mais fortes exaltações. O relato duma experiência-limite -- a de médico voluntário nas trincheiras da Flandres -- resultou num livro que não nos deixa grande margem para fruições se pegrmos nele como leitor desprevenido, tal é a carga emocional que transporta. Mas memorialística, género eminentemente literário, está subordinada às exigências da escrita. Nas Memórias de Raul Brandão (1919-33), ao contrário do que sucede com a narrativa do historiador, dão-lhes profundidade os textos preambulares de cada volume -- expressões dramáticas do peculiar sentimento trágico da vida. E Vasco Pulido valente -- para mencionar um autor nosso contemporâneo --, em Retratos & Auto-retratos (1992), é um significativo exemplo de como uma existência desinteressante para o público não impede uma redacção de memórias de primeira água, em que o estilo, opulento, mas vigiado, é a primeira estrela dessa escrita.
(continua)

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