Monday, December 31, 2012

Castro na Oposição

A capa e a resenha d'A Sessão de 30 de Novembro de 1946 do Movimento de Unidade Democrática,
numa das grandes intervenções de Ferreira de Castro na Oposição ao Estado Novo, aqui.

Saturday, December 29, 2012

«Um medo frio» -- Breve nota sobre a memorialística castriana (4)

Ferreira de castro proveio duma família de camponeses de Ossela. Órfão de pai aos seis anos, aos doze partiria, só, para o Brasil, onde trabalharia num seringal da Amazónia, no meio dos retirantes esfomeados -- que tinham na extracção da borracha a alternativa às suas vidas secas do Ceará e do Maranhão --, entre os capatazes, os jagunços, os ex-escravos, o pavor das feras e o temor dos índios, o inferno verde... No meio desta fauna, ainda encontrou quem lhe desse que ler: jornais, charadismo, um que outro livro, por vezes de Coelho Neto; ensimesmado, teve ocasião de escrever um romancinho intitulado «O Amor de Simão», editado por si pouco depois em Belém, já com o nome definito de Criminoso por Ambição. Aos dezassete anos, fazia biscates colando cartazes na capital do Pará; se tivesse sorte podia não dormir ao relento; se o estômago estivesse composto e o peso do desespero não fosse avassalador, podia frequentar Camilo e Eça, Balzac e Zola na biblioteca pública da cidade, anotando numa agenda de bolso máximas que o impressionaram, fazendo exercícios de estilo e lembretes importantes para o escritor que ele teria forçosamente de ser. E se por essa altura ainda trabalhou como embarcadiço num navio que fazia a carreira do Oiapoque, entre Belém e Caiena -- lavando o convés e sabe-se lá mais o quê -, dois anos mais tarde, em 1917 estava como co-director dum semanário destinado à comunidade lusa, o Portugal, cuja influência permitu editar um (então) tradicional e volumoso Almanaque.

Sol XXI # 38/39, Carcavelos, 2003

(foto)


Monday, December 24, 2012

incidentais #14 -- da Revolução e do Amor ao Estilo, passando por uma abelha moribunda

do cap. I

*o incipit: «Manhã alta, toda vestida de azul, com olhos brancos que o mar tecia e esfarrapava ao sabor da ondulação, a sombra escortinada na linha do horizonte ia crescendo e definindo-se em caprichoso recorte.»

* Diz-se que Eternidade encerra o ciclo de romances autobiográficos iniciado cinco anos antes, com Emigrantes; mas creio que só neste se poderá considerar o protagonista, Juvenal Gonçalves, como alter ego do autor, o que de modo nenhum sucede com o rústico Manuel da Bouça de Emigrantes, nem com o jovem universitário monárquico de A Selva, Alberto. Em Eternidade, autor e personagem têm a mesma idade, ambos acabam de sofrer a perda dolorosíssima da respectiva companheira (Diana de Liz, 1892-1930), os dois (como se verá com o desenrolar da narrativa) os mesmo ideais libertários. Diferem na formação académica, Castro, autodidacta; Juvenal, engenheiro silvicultor -- não por acaso engenheiro; não por acaso silvicultor. Se o engenheiro opera sobre a Natureza, transformando-a, desejavelmente, ao serviço do Homem, o silvicultor ama-a e respeita-a, o que foi sempre uma marca libertária castriana: a transformação, se quisermos a Revolução, guiada pelo Amor aos homens e aos seres vivos, naturais e vegetais, sem o qual Amor, não passarão de números, massa, entes desprovidos de individualidade e, por consequência, de dignidade.

* Livro que trata da morte, da perda, do sentido da vida, um primeiro episódio -- ainda Juvenal acorre à amurada, antes de acostar no porto do Funchal, e que dá a medida da debilidade seu estado psicológico -- em torno de uma abelha, frágil ser vivente, é das passagens mais impressivas que Ferreira de Castro escreveu.

* Também aqui brilha o estilo de Ferreira de Castro, a sua enorme capacidade descritiva, de que A Selva é o melhor exemplo. No início de Eternidade do Funchal, o casario que nos vamos aproximando é dotado de vida própria, como se possuísse um desígnio, como se fosse dotado de vontade: «E o casario, branco, risonho, aumentava sempre. Em busca de espaço e de maior largueza panorâmica, dera-se a trepar pelas encostas vizinhas, até ao Pico do Facho. Não contentava o ambicioso que cada janela fosse alegre miradoiro sobre o mar e sobre o regaço de onde ele iniciara o ponto de partida. Queria mais, e, pouco a pouco, ia sacudindo a cabeleira de colmo, substituindo-a por telha que gritava, de entre o verde-pardo do quadro, o seu vermelho novo.»

Thursday, December 20, 2012

Ferreira de Castro e João Pedro de Andrade (4)

Outro factor de proximidade entre o romancista e o ensaísta foi a admiração que ambos nutriram por Raul Brandão. Andrade é, como se sabe, autor de um excelente estudo biográfico sobre o autor do Húmus; quanto a Ferreira de Castro, que com ele privou, desde cedo proclamou o seu entusiasmo por esse escritor singular (logo em 1922, nas páginas de A Hora), num texto admirável, dizendo então não conhecer Raul Brandão nem desejar conhecê-lo pessoalmente, pois temia que alguma mesquinhez do Brandão homem pudesse toldar a admiração que ele tinha pelo Brandão escritor... (1) Foi, porém, este mesmo texto que esteve na origem de uma amizade entre Ferreira de Castro e o autor português que mais profundamente o impressionou, como já há muitos anos Jorge de Sena assinalou e nós próprios tivemos oportunidade de recentemente desenvolver. (2)

(1) Ver Ferreira de Castro, «Os grandes peninsulares -- Raul Brandão», Mas..., Lisboa, 1921, [1922] pp. 32-32. 
(2) Ver Ricardo António Alves, «"A cruel indiferença do Universo: Raul Brandão e Ferreira de Castro», Castriana #1, Ossela, Centro de Estudos Ferreira de Castro, 2002, pp. 111-132.

in João Pedro de Andrade -- Centenário do Nascimento (1902-2002), Lisboa, Câmara Municipal / Hemeroteca Municipal, 2004.

Tuesday, December 18, 2012

incidentais #13 -- das aspirações de um lapuz

do cap. I

* o incipit -- «Preta e branca, preta e branca, preta e branca, o preto mui luzidio e muito níveo o branco, a pega, de cauda trémula, inquieta, saracoteava entre carumas e urgueiras, esconde aqui, surge ali, e por fim erguia voo até a copa alta do pinheiro, levando no bico ramo seco ou graveto.»

* É a visão do protagonista, Manuel da Bouça, deitado à sombra de uma árvore, seguindo a azáfama do pássaro e distraído, por momentos, da decisão que já havia tomado intimamente mas ainda não comunicara a Amélia e a Deolinda, mulher e filha: partir, só, para o Brasil.

* Enquanto observava, vinha-lhe à memória a infância, tempo de pureza, inocência originària; quando desvia o olhar e vê terras bem tratadas e prósperas, nada que se comparasse com as pequenas courelas que entretanto hipotecara, angariando assim o dinheiro para a viagem o olhar tolda-se. Possuí-las «era o seu único sonho, a grande aspiração da sua vida.»; meio de casar bem a filha, acrescentar os bens e alcançar uma notoriedade vedada à sua insignificância social, mimetizando o brasileiro torna-viagem bem sucedido.r

*O que se verifica com Manuel da Bouça é a escravização à miragem do ter. Ser proprietário, enriquecer, é o desiderato da personagem, que, pelo negativo, é ponto de partida para se descortinar a posição ideológica do autor 

* É certo que nela existe algum inconformismo em face da mediocridade da existência naquela aldeia da Frágua; mas como já escrevi, Manuel da Bouça é  um tipo fundamentalmente negativo, mesquinho e ignaro, sublinhado pela sua esplêndia caracterização, a um tempo física e psicológica: «olhos castanhos, pequeninos e movediços», «era tosca cariátide de sobreiro aquele corpo meão mas rijo».

* A verosimilhança do rústico analfabeto e simplório a caminho do desconhecido, o seu esquematismo mental, tão bem dados por Ferreira de Castro, aliados ao estilo sóbrio mas não monótono, agarra-nos de imediato. Terminando o capítulo, sabemos que ele partirá. As lágrimas das mulheres da casa não são bom augúrio. E queremos ler mais

Thursday, December 13, 2012

incidentais #12 - da política, da responsabilidade pessoal e do envelhecimento, passando por Quevedo e Calvino

do cap. I

* Protagonista: um velho advogado e dirigente socialista, don Alvaro Soriano, um dos herdeiros políticos do histórico Pablo Iglesias, da fundadação do PSOE. A acção decorre em Madrid, ao tempo da II República Espanhola (1931-1939)

*Incipit: «Encontravam-se os três à mesa de jantar e o velho relógio de pêndulo marcava onze horas menos um quarto.»

*O jantar tardio dos espanhóis, cena familiar confinada a Soriano, viúvo, à irmã, Mercedes, ao filho mais novo, Paco, com aparição de Ramona, a criada.

* Percebe-se o carácter tranquilo da personagem principal no meio de uma tempestade política pessoal, a ruptura com a nova geração de dirigentes do partido, formal e iminente; o interesse no seu concurso por parte do Partido Nacional, principal opositor dos socialistas, à direita.

*Mercedes, personagem autoritária, conservadora, católica, com quem o irmão acolhe com bonomia.

* A leitura dos jornais da tarde, após o jantar, acompanhado de um charuto, mostra alguém que desacelerou a actividade política, voluntária ou involuntariamente. Um deles traz um eco acerca do seu provável abandono do partido e especula sobre uma eventual adesão às hostes do partido da direita.

* Entremeia-se, sem concentração em face da notícia, a leitura de La Vida del Buscón, de Francisco de Quevedo, acompanhada de reflexão acerca dos clássicos que, fruto das obrigações académicas que os impunham, deles se afastara, tomando-os por literatura morta, para voltar ao seu convívio na idade madura:

«O que, outrora, lhe parecia enfadonha velhice na arte de dizer, ingenuidade na maneira de transmitir raciocínios e observações, surgia-lhe, agora, com um sabor novo, com a frescura de uma hora matinal, a luz de uma aurora precursora. Era toda uma experiência humana que falava, com prodfunda sagacidade, de dentro de remotos túmulos

-- perguntando-se se este apego ao antigo seria mérito perene das obras canónicas ou se evidenciaria sinal de senectude. Calvino, d'além túmulo, em livro póstumo, ensaiaria resposta.

* A notícia sensacional duma provável atitude vira-casacas avançada pelo diário, origina a indignação do próprio, alvo de manobrismo, da intriga política em conluio com o jornal, originando reacções expectáveis: telefonemas, de congratulação pela notícia ou incredulidade nela, consoante o espectro político de quem liga; telegrama com insultos.

* Algum espaço é dado a um antigo militante, seu correligionário e seguidor, indignado com a calúnia, que servirá para lançar o leitor no problema que o romance põe, que será qualquer coisa como: «o que nós nos somos é indissociável do que somos para os outros?». Isto é: qual a responsabilidade de alguém -- neste caso um dirigente político com pergaminhos na contenda política -- que devém uma espécie de símbolo, uma bandeira de luta, pela posições assumidas ao longo dos anos, para aqueles que aderiram aos seus ideais, proclamados nas tribunas e na imprensa?

* Escrito por volta dos cinquenta anos, A Curva da Estrada é, entre outras coisas, um romance sobre o envelhecimento.

*Publicado em 1950, 26 anos depois de abolido o multipartidarismo, creio que terá sido algo insólito no tempo político portugês de então.

Friday, November 30, 2012

incidentais #11 - do homem isolado ao inconformismo, passando por poetas da «Claridade»

Do «Pórtico» de Terra Fria (1934) -I

* Castro sente a atracção pelo que está afastado da "civilização", ilha ao abandono no oceano ou aldeia remota isolada por montanhas, não por exotismo, mas pelo perscrutar dos efeitos que o apartamento provoca no espírito humano.

* Uma grande diferença, porém: a ilha impele à evasão de si, à errância, ansiada ou efectivamente concretizada.

*(Ocorrem-me agora os bravos poetas caboverdianos da Claridade:
«O drama do Mar, / o desassossego do Mar, / sempre / sempre / dentro de nós!», Jorge Barbosa, «Poema do Mar», Ambiente, 1941 -- Barbosa, que Ferreira de Castro muito admirava);
«Mar parado na tarde incerta.», Manuel Lopes, Crioulo e Outros Poemas, 1964);
«Mar, tu és o que fica.», Osvaldo Alcântara, pseudónimo de Baltazar Lopes, Colóquio / Letras #14, 1973;
«Canivetinho / Canivetão / Vá / Té / França. / A única esperança...», Pedro Corsino Azevedo, Mensagem #6, 1964
-- recolha de Manuel Ferreira, No Reino de Calibã vol. I.)

*Voltando a Ferreira de Castro: «A nostalgia deve ter nascido numa ilha e só numa pequena ilha se compreende, integralmente, o subtil significado da distância.» Pelo contrário, nos interiores continentais, e em especial nesses vales circundados por montanha, queda-se atabafado «o homem metido em si próprio, o homem que reduziu a vida à árdua conquista do pão quotidiano e o enigma do infinito a uma simples crença, para dele se servir nos momentos de vicissitude ou quando a morte lhe bate à porta.... ». 

*Espécime humano que ficou no ontem, «página viva de antropologia», «farrapo» de existência pretérita com o qual Ferreira de Castro -- homem de cidade, intelectual e cosmopolita, mas que fora um pobre filho de camponeses, expatriado na infância -- não consegue deixar de irmanar-se, «em compreensão e amor» --, até porque, paulatinamente, pela «força da evolução que o vai penetrando», o surpreende em lenta mutação -- um gesto, um olhar, um dito --, «num trabalho lento de  pua furando granito.»

* No país, duas concepções: tradicionalista, uma, refractária à contaminação pelo progresso;  inconformista outra, considerando que a resignação não é da natureza humana. Mas isto é já outra conversa, e eu ainda nem acabei de falar do «Pórtico» de Terra Fria.

Wednesday, November 28, 2012

Recordar Rocha Martins (4)

Politicamente um monárquico liberal, não se eximiu a colaborar no jornal anarco-sindicalista A Batalha, como -- após um inicial bom acolhimento à Ditadura Militar -- a juntar-se às hostes da Oposição, essencialmente republicana, após verificar a natureza autoritária do Estado Novo, contrária ao seu liberalismo de princípio. Ficou para a posteridade o pregão dos ardinas lisboetas, anunciando o República, cada vez que incluía prosa sua: «Fala o Rocha! [O Salazar está à brocha*]».

*falta no original

Monday, November 26, 2012

Valle-Inclán e Portugal



Acaba de ser publicado em Lugo, pela Editorial Axac, o estudo de Rosario Mascato Rey, Valle-Inclán Lusófilo: Documentos (1900-1936). Profunda conhecedora da obra Ramón del Vallé-Inclán, procede a um levantamento das relações portuguesas do autor de Sonta de Outono. Ferreira de Castro, é claro, que por ele nutria grande admiração, mas também Leal da Câmara, Novais Teixeira, Guerra Junqueiro, António Ferro e Armando Boaventura. Oportunamente escreverei a propósito.

Friday, November 23, 2012

incidentais #10 - de como a propósito do pórtico de «A Tempestade» se fala em projectos adiados, numa bisavó, terminando com mais gravidade

(do «Pórtico» de A Tempestade, 1940)

* Já aqui se falou, e voltará a falar-se, da apresentação que Ferreira de Castro escreveu para abrir o seu romance malquisto. Essa má-vontade tem tanto de injusto para o livro, uma narrativa psicologista -- traço que esteve sempre presente na obra castriana, basta lembrar Eternidade --, como razão de ser. Só para recordar: O Intervalo, fragmento da projectada e nunca realizada «Biografia do Século XX» estava na gaveta, de onde saiu apenas em 1974, integrado precisamente n'Os Fragmentos; o seu desígnio como romancista chocava com o tempo que lhe era dado viver: Estado Novo, Guerra Civil de Espanha, II Guerra Mundial; para sobreviver, teve de dedicar-se à literatura de viagens; só no pós-guerra, com a abertura do regime, A Lã e a Neve pôde trazer à luz a arte do romance tal como ele a concebia. Para trás, este negregado A Tempestade, escrito com raiva [sic]. Adiante com as injustiças do criador para com a criação...


* Redigido sob a forma duma carta a um "amigo" médico que lhe servira de cicerone no Cairo (1935). Seguem-se, após referência à recém construída ponte de Kars-en-Nil , cinco parágrafos impressivos sobre o Egipto, território que já dera um capítulo a Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937): «Um vaporzito, com graciosidade de gaivota e calentura de forno, largou de ao pé da Kars-en-Nil, apitando aqui e ali, que o tráfego fluvial era grande em frente da cidade, começou a subir o rio sagrado.»

* As referências ao felá, recordaram-me esse mesmo capítulo dos Pequenos Mundos e de como já há décadas pensei em fazer a comparação com O Egipto de Eça de Queirós (em tempos propus-me realizar uma grande trabalho sobre este póstumo queirosiano; não passou de um estudo exíguo que prometia, e que acabei por não cumprir, generosamente publicado por Bernard Emery na sua Taíra).

*Essas referências de intenção social servem para lembrar o amigo --e também de justificação a si próprio e advertência mais ou menos velada ao leitor -- que fora prometido um livroque espelhasse os desígnios de emancipação humana que Castro adoptara para si como homem e escritor; e que uma conjuntura desfavorável impedia de concretizar (com efeito, O Intervalo será escrito em 1936, um ano depois dessa estada no país dos faraós). Promessa que não fora cumprida, interrompida pela viagem como forma de sustento e substituída (terminando com as palavras finalizadas em ida -- aliás, o nome duma bisavó brasileira que não conheci...) por ATempestade, para mágoa do autor, provavelmente comvencido de que o romance não estava à altura dos pergaminhos de quem escrevera Emigrantes, por exemplo: «Fico bastante pesaroso, creia, por saber que você, sempre tão atarefado, sempre à roda de gente que sofre, vai perder, por amizade para comigo, tempo a lê-lo-- tempo que poderia empregar melhor.» Desfecho que provocará o desagrado de Roberto Nobre, que, numa carta, lhe diz ter ele, Ferreira de Castro, inoculado o vírus da ideologia que perfilhou, e que nunca desaparecerá, mesmo que ele se decida a escrevr sobre os astros  celestes (ver Correspondência (1922-1969))

* Outro aspecto importante deste prólogo é o da concepção castriana do romance como documento de uma época, fonte para o futuro, crítico que era do género historiográfico então prevalecente, narrativa biográfica, política e institucional em que o povo (ontem, o terceiro estado) estava ausente. E com efeito, pesem as excepções, a história social só conheceria impulso decisivo após a afirmação da Escola dos Annales. Daí também um certo amor à filosofia e a ilusão (ou vontade dela) de que o conhecimento, de si, do outro, do Universo, pode modificar a essência do ser humano.

* Finalmente, alusão a um tema a que voltará dez anos mais tarde, em A Curva da Estrada: como à medida que vamos envelhecendo vamos também regredindo nas convicções: no romance, a questão política, o conservadorismo que a idade pode induzir; no pórtico de A Tempestade, o tema religioso, o escapismo do sobrenatural.

Tuesday, November 20, 2012

«A cruel indiferença do Universo»: Raul Brandão e Ferreira de Castro (4)



Na pequena parte da livraria pessoal que se conserva no Museu Ferreira de Castro, em Sintra, existem alguns livros de
R aul Brandão, entre os quais a primeira edição de Os Pescadores (Lisboa, Aillaud e Bertrand, 1923), com uma dedicatória banal: «Ao ilustre escritor Ferreira de Castro, of. o / seu ador e aº / Raul Brandão / Dº [?] / 1923».  caricatura: Cruz Caldas

Saturday, November 17, 2012

incidentais #9 -- demasiado bom para ficar esquecido

Do «Pórtico» original de A Selva, datado de Fevereiro de 1930

*Parto-o em três: o primeiro fragmento será a reflexão sobre o efeito que a vivência na Amazónia (1911-1914) teve em si, fazendo jus a todo o romance.

*«É bem certo que conduzimos ao longo da vida muitos cadáveres de nós próprios.» -- assim se inicia este preâmbulo, remetendo ora para o pavor da criança afastada da aldeia natal e desterrada naquela brenha, ora para os traumas persistentes no agora escritor, que ali chegou menino e se fez homem antes de a idade e os documentos lhe certificarem a adultez: «A minha vida tem andado cheia dêste pesadelo. Esqueço-me de mim, mas não me esqueço da selva. Dominou-me com o seu mistério e com a sua soberania; não a evoco sem um estremecimento de pavor. Cá a tenho, cá a tenho a romper o optimismo com que procuro cobrir, para menor sofrimento, o pessimismo e a morbidez que ela me deu.»

*Uma explicação possível para a eliminação deste trecho, demasiado bom para ser esquecido: a vontade de afastar o mais possível uma conotação autobiográfica.

*Elejo um segundo fragmento, que grosso modo persiste até hoje: «Eu devia êste livro a essa Amazonia longínqua e enigmática [...]», evocando em seguida os «anónimos» cearenses e maranhenses, os retirantes nordestinos que saíam em desespero da sua terra pobre e parca para um território desumano e desmesurado.

*Um último trecho, também retirado posteriormente: uma parte é transferida para o prefácio da 4.ª edição de Emigrantes; a outra alude à polémica que este romance já suscitara nos meios nativistas brasileiros. Castro espera que o mal-entendido se houvesse desvanecido: «As gentes do Ceará e do Maranhão, que trocam a sua terra pela Amazonia, não são menos desgraçadas que os nossos camponeses, que trocam Portugal pelo Brasil.»

* Enganara-se: A Selva suscitaria ainda mais a fúria dos nacionalistas de vistas estreitas e prosápia incontinente, dos verde-amarelistas cretinos, como, na ocasião, os qualificou José Lins do Rego.

Friday, November 16, 2012

Neo-Realismo: contributo para dificultar um problema (4)

Será útil, antes de avançarmos com a nossa reflexão fundamentada, passar em revista alguns autores comunistas coevos, cujas opiniões sobre o significado da obra de Castro são por vezes divergentes. Apenas a importância fundadora do autor de A Selva parece colher o acordo entre aqueles que a quiseram registar.
Anarquismo e Neo-Realismo -- Ferreira de Castro nas Encruzilhadas do Século, Lisboa, Âncora Editora, 2002.

Monday, October 29, 2012

Os retratos de Castro por Nobre (4)

De Ferreira de Castro, conhecem-se seis retratos da autoria de Roberto Nobre, todos, de resto, já publicados.* O nosso propósito é o de tentar contextualizar esses desemhos, bem como propor um sétimo retrato, que até agora nunca foi tido como tal.

*Escrito e publicado há mais de uma década, antes de se revelarem cerca de meia dúzia de novas caricaturas e esboços inéditos, objecto, com outros trabalhos, da exposição temporária no Museu Ferreira de Castro: «Retratos e Caricaturas de Ferreira de Castro» (2005). 

 «Os retratos de Castro por Nobre», Vária Escrita #8, Sintra, Câmara Municipal, 2001 (com alterações).

incidentais #8 - dos tempos e da sua passagem

* o «Pórtico» de quatro páginas é um bosquejo de história social e económica (e também mental) do percurso da lã na Serra da Estrela ao longo dos tempos: do surgimento dos «primeiros teares», abastecidos pelos «rebanhos dos Hermínios», presumo que na Idade do Ferro, às fábricas da Covilhã, com milhares de operários, cuja vida oscilava à medida da flutuação dos preços da matéria-prima nas praças internacionais.

* Sobre a passagem das horas: da condição pré-moderna dos tecelões domésticos -- detentores dos factores de produção como do tempo de trabalho --, ao proletariado fabril que, se possuía algo, pouco mais seria que a vontade de progredir e resistir (ou resistir e progredir). Vontade que só a alguns implicarão significações que vão para além o estômago, como é costume.

* Publicado em 1947, A Lã e a Neve é não apenas um dos romances de maior notoriedade de Ferreira de Castro; é também, parece-me, aquele que ombreia com A Selva -- por muito relevantes que sejam Emigrantes, Eternidade ou A Curva da Estrada. Outro livro que apresenta o homem como transeunte quase impotente no meio dos elementos, das «soledades alpestres».

* Uma mera indicação, que não acrescenta nem retira nada:  A Lã e a Neve é o livro mais traduzido de Ferreira de Castro, depois de A Selva, é claro...

* A Lã e a Neve põe questões teóricas interessantes sobre o neo-realismo; algo que também é pouco relevante para a obra literária.

Saturday, October 27, 2012

A NARRATIVA NO MOVIMENTO NEO-REALISTA -- AS VOZES SOCIAIS E OS UNIVERSOS DA FICÇÃO, de Vítor Viçoso (29 -- e final)

Quero terminar – ficando muito por dizer – salientando o que esta obra significa de resgate ao silenciamento de escritores como Mário Braga, Joaquim Lagoeiro, Antunes da Silva, Leão Penedo, Faure da Rosa, Romeu Correia, Assis Esperança, Maria Archer, Castro Soromenho, entre tantos outros; agradecer ao Prof. Vítor Viçoso este trabalho histórico pelo que representa de ponto da situação relativamente ao acervo literário deixado pela Geração de 40; e, finalmente, fazer convosco um pequeno exercício: vou à bibliografia activa de A Narrativa no Movimento Neo-Realista e dela enunciarei cerca de dez por cento dos títulos utilizados pelo autor. São eles: A Selva, O Signo da Ira, Hora di Bai, Manhã Submersa, Seara de Vento, Esteiros, O Mundo em que Vivi, Retalhos da Vida de um Médico, Finisterra, O Delfim, Barranco de Cegos, Levantado do Chão, Suão, Adolescente Agrilhoado, Terra Morta. Imaginemos como seria mais pobre a nossa cultura sem estes e outros livros aqui estudados pelo autor.

Ricardo António Alves,

Sintra, 21-X-2011

(texto lido na apresentação do livro no Café Saudade, Sintra, em 21 de Outubro de 2011)

Tuesday, October 23, 2012

castrianas - Alberto Viviani

Alberto Viviani (1894-1970), amigo e confrade de Marinetti, colaborador da Civilização de Ferreira de Castro, destaca no Il Popolo Toscano a magnitude de A Selva (que viria a conhecer tradução italiana em 1934): 
«Ciò che v'è di nuovo, di formidabile e di originale nel romanzo di Ferreira de Castro [...] è l'ambiente. La descrizione dell'Amazonia, slabordisce e meraviglia. L'evocazione della selva verde nera con il suo oscuro sortilegio, il suoi terrori extra umani, con la sua esuberanza di vita che determina il «delirio de la Natura, schiaccia ed annulla la natura umana.»
E o estilo seguro aliado à riqueza lexical e o conhecimento de dentro que servem o romance: 
«Il poema della floresta amazonica è tracciato da questo giovanni scrittore con mano veramente maestra: sicurezza nella vizione interiore, certezza nella vivisezione. [...] // Ferreira de Castro è ormai padronne duma orchestrazione verbale ricca di accordi nuovi, illuminata di strani ritmi da poter ricostruire per noi profani il linguaggio della foresta.»

Recolhido por Jaime Brasil em Ferreira de Castro e a Sua Obra, Porto, Livraria Civilização, 1931.
caricatura: Umberto Onorato

Thursday, October 18, 2012

incidentais # 7 -- o estilo é o homem

* A Experiência é um romance de Ferreira de Castro, de certa forma secundarizado pelo próprio, ao metê-lo entre A Missão e O Senhor dos Navegantes (qualquer deles, novela e conto, já conheceram edições autónomas; A Experiência também, mas... na Argentina). 
* Uma história comovente de duas crianças desvalidas, Januário e Clarinda, meninos de asilo que desembocarão na marginalidade: ele ladrão, ela prostituta.
* Primeira parte «ELE» -- I A Entrada: «A furgoneta deteve-se.» [o incipit].
* Um estilo de extrema ductilidade e simultaneamente de grande intensidade psicológica, ambas características do escritor, que vai refinando de livro para livro: «[...] ele não tinha mais de vinte anos, apesar dos seus olhos parecerem exaustos por não se sabia quantas madrugadas do princípio do Mundo.» / «[...] os seus olhos volviam teimosos, ilegais, à fachada, à praça [...]».
* A repetição, figura de estilo que caracteristicamente usou com mestria:  «Lá estava a praça larga e deserta, com um pequeno jardim na extremidade e o posto do correio, à esquerda. Lá estava a velha igreja que padroava o vale sobre o planalto -- lá estava.»
* Uma chegada à prisão, um guarda convincentemente neutro, duro mas sem agressividade. O outro, o que representa a autoridade, a farda, a repressão -- dificilmente um guarda prisional terá outra conotação... -- não é, contudo, desprovido da sua humanidade. Para Castro, houve uma circunstância que fez dele um carcereiro, como de Januário um gatuno.

Wednesday, October 17, 2012

A NARRATIVA NO MOVIMENTO NEO-REALISTA -- AS VOZES SOCIAIS E OS UNIVERSOS DA FICÇÃO, de Vítor Viçoso (28)

E se Finisterra é um livro à parte no Neo-Realismo, outro livro inusitado termina esta longa digressão: Levantado do Chão, de José Saramago (1980), classificado pelo futuro Nobel como «o último romance do Neo-Realismo, fora já do tempo neo-realista» (p. 334). Vítor Viçoso sinaliza nesta obra o distanciamento irónico (p. 333) e crítico do escritor, o «prolífero ludismo verbal» (p. 334), o cepticismo em relação «à epicidade datada e algo ingénua do protagonista colectivo» (p. 334), que encerra um capítulo ou uma fase do Neo-Realismo – «o epílogo glosado de toda uma literatura que se orientou, desde o expressionismo visionário de Raul Brandão, passando pelo realismo social de Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro, até à representação dialéctica classista dos neo-realistas» (p. 334-335) e abrem, segundo o autor, uma nova maneira de organizar e questionar ficcionalmente o mundo.» (p. 335) Como leitor, gostaria de ver estudada a persistência dos tópicos neo-realistas na obra de José Saramago, pós-Levantado do Chão. Talvez ficássemos surpreendidos.

(texto lido na apresentação do livro no Café Saudade, Sintra, em 21 de Outubro de 2011)

Sunday, October 14, 2012

"a capacidade de admirar" - duma carta de José Bacelar (24-VII-1935)

[agradecendo a carta que Castro lhe enviara, a propósito de Revisão -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana, Lisboa, Portugália Editora, 1935]

[...] Mas aquilo que de maneira nenhuma eu esperava é que seria tão generosamente recompensado desse tratamento com cartas tão humanamente amigas, como o é por exemplo aquela que me escreveu. Através duma existência sem grandes benefícios e com algumas amarguras -- como quase todas as existências -- julgo ter pelo menos conservado intacta uma coisa de que, devo confessá-lo, me orgulho um pouco, porque ela nos faz talvez sentir que a nossa alma não está completamente abastardada. E se aqueles a quem admiro se lembram de me dar um apoio tão leal e tão nobre como é o seu, considerar-me-ei plenamente pago dum esforço cujo único valor está na boa vontade, e mesmo das consequências que para mim podem advir desse mesmo esforço. [...] (1)

(1) Em Revisão 2 -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana, Lisboa, Portugália Editora, 1936, pp.  190-19, Bacelar escreveu: «A necessidade de admirar é um sentimento nobre porque é o daqueles que não se contentam com as vulgaridades que a vida vulgar lhes dá. Admirar não é mais do que criar autores dignos de si. É a necessidade de elevar os outros até si mesmo -- para fugir à solidão.»

«Cinco centenários -- Cartas inéditas de José Bacelar, Fernanda de Castro, Castelo Branco Chaves, José Gomes Ferreira, José Osório de Oliveira e Ferreira de Castro», Vária Escrita #7, Sintra, Câmara Municipal, 2000.


Thursday, October 11, 2012

castrianas - "El horror es civilizado, y la belleza, natural.": «A Selva», segundo R. Cansinos Assens

«Esqueço-me de mim, mas não me esqueço da selva», escreveu Ferreira de Castro na 1.ª edição do seu romance, frase que  o escritor, crítico e erudito espanhol Rafael Cansinos Assens -- que Jorge Luis Borges considerou seu mestre -- destacou em La Libertad, de Madrid (1930), para salientar como a floresta amazónica, na qual Castro mergulhara com 11 anos, se constituíra como parte integrante da sua personalidade.
Entre outros aspectos, analisa o gesto apocalíptico e final do negro Tiago (que o articulista compara ao Macambira de O Rei Negro, de Coelho Neto (1914): para Cansinos, o antigo escravo configura uma némesis, instrumento de vingança com intuito justiceiro: «Su reacción vindicativa los comprende a todos en su agresividad; es personal y solitaria, aunque asuma incidentalmente un sentido social y pueda parecer el desquite que por su mano se toma sobre el común expoliador esa casta inmensa de explotados que abarca hombres de todas razas y colores.»
Tiago está, portanto, distante de Alberto, cuja tomada de consciência da desumanidade, da iniquidade com que são tratados os seringueiros, leva a uma alteração de ponto de vista ideológico, em que a sociedade deixa de se justificar na sua arrumação classista e hierárquica, inconsistente com a dignidade intrínseca de cada homem e de todos os homens. El horror es civilizado, y la belleza, natural. -- foi a forma lapidar como Rafael Cansino Assens se referiu à monstruosidade concentracionária dos seringais.
No "Paraíso" (a ironia...) que Ferreira de Castro nos retrata, e em todos os outros, os homens não estão só manietados pelas dívidas contraídas, como se reduzem eles próprios à desumanização quando, pela quase inexistência de mulheres, se permitem violar uma criança, ou, animalizando-se recorrem a práticas de zoofilia. Os castigos corporais infligidos aos seringueiros fugitivos (sem haverem liquidado a dívida que tinham para com o dono do seringal), capturados pelos sicários de Juca Tristão, desencadeiam o gesto de Tiago -- a eliminação do opressor pelo fogo. Recurso que R. Cansinos Assens vê não apenas como um desenlace lógico da narrativa, como uma própria exigência estética dela: «Etica y Estética van más unidas de lo que se cree.»
Castro tinha uma relação próxima com muitos escritores espanhóis, em especial na década de 1920 (um aspecto por historiar). Com Cansinos ela foi intensa do ponto de vista espistolar, enviando-se mutuamente os livros, mais espaçada no pós-guerra (os espólios de um e de outro poderão testemunhá-lo com maior precisão). A forma como o escritor espanhol, inicia esta importante crítica no jornal madrileno* denota uma proximidade mais além da simples relação literária e epistolar: «Mientras Ferreira de Castro pasea por las Azores su neurosis litteraria y el pabéllon de «O Século», el gran periódico que le tiene por su insustituible cronista, nos llega de Oporto esta novela suya, «A Selva», que se inscribe en el ciclo iniciado por «Emigrantes» y que puede considerar-se auspiciado por una alta intención social.»

* coligida por Jaime Brasil, Ferreira de Castro e a Sua Obra, Porto, Livraria Civilização, 1931.

Tuesday, October 09, 2012

incidentais #6 -- fala-se em ética no seguimento duma visão duns quadris

* «Bagatelle» prepara-se para pintar a palavra MISSÃO, em letras bem grandes, visíveis do ar, no telhado do edifício religioso. Estamos em França, 1940, os alemães invadem e atacam. Um convénio entre a Santa Sé e a Alemanha nazi prevê a salvaguarda de igrejas e mosteiros. Mounier passa distraído por «Bagatelle», pensando nos quadris de mulher que vislumbrara havia pouco, antes de fugir ao «sorriso brando e húmido» em que quase se enleara. Num sobressalto, pára, recua e manda suspender o trabalho. Este é o incidente fulcral na trama da pequena jóia que é A Missão.

* Atendendo ao desenvolvimento da novela, às posições do padre Georges Mounier no concílio que se segue na comunidade, parece-me evidente que para Ferreira de Castro -- um ateu --, a ética só acidentalmente, e consoante cada indivíduo, poderá ser compreensível num além religioso; antes, é algo terreal e racional.

* o incipit:  «O edifício, velho e longo, muito longo e de um só piso, parecia querer mostrar que a sua missão, justamente por ser celeste, devia agarrar-se à terra, estender-se bem na terra, para extrair a alma dos homens que nela viviam.»

* mestria (quando Mounier pergunta ao pintor sobre quem lhe mandara fazer aquele trabalho): «O "Bagatelle" havia compreendido que aquela pergunta se alargava para fora da curiosidade corrente, pois alguma coisa a mais viera embrulhada com as palavras; e, pousando a lata sobre o telhado, aguardou, respeitoso.»

Monday, October 08, 2012

Castrianas - Mário Gonçalves Viana

Crítico literário do Jornal do Comércio e Colónias e polígrafo, Mário Gonçalves Viana (1900-1977) foi um dos primeiros a notar o estilo poético de Ferreira de Castro, na recensão a A Selva, acabado de sair («o maior acontecimento literário da presente temporada», dirá), classificando o romance como um «autêntico poema em prosa». 
Lendo bem o livro, não esquecerá a questão social, protagonizada pelos seringueiros, chamando contudo a atenção para o papel central da floresta na narrativa:

«[...] àparte a evocação admirável da escravidão do homem pelo homem, o enredo é quase um pormenor, um pretexto ou mesmo um incidente. o que avulta, o que emplga, o que deslumbra -- é a descrição do cenário estupendo dentro do qual o romance gravita [...].»
Mário Gonçalves Viana, «"A Selva", uma obra-prima», Ferreira de Castro e a Sua Obra, Porto, Livraria Civilização, 1931.

Wednesday, October 03, 2012

incidentais #5 -- do escrúpulo do romancista diante de livro novo

(o último romance de Ferreira de Castro, publicado, em 1968)

do «Pórtico»:

* Castro dirige-se ao etnógrafo Nunes Pereira, grande figura da vida cultural, científica e política da Amazónia. O mesmo que em tempos lhe mandara terra do seringal Paraíso -- que se encontra em exposição no Museu, em Sintra --, fotografias do que restava do acampamento, e que pesquisara nos arquivos do escritório o que ficara anotado dos proventos do jovem Zeca Castro (13 anos incompletos quando lá chegou, em 1911) nos livros do deve & haver: «[...]a minha vida sintetizada em algarismos, como é de bom e corrente uso no Mundo em que vivemos; neste caso poucas cifras, pois eu ganhava dez tostões por dia.»

* A evocação do terror infantil da possibilidade de um ataque dos Parintintins , tribo temível com um longo historial de conflitos com os seringueiros, e cujas notícias da prática da decapitação das vítimas não contribuiriam, decerto, para grande sossego do rapaz... Castro nunca se terá deparado com eles (assim o crê Bernard Emery), nem há notícia de que alguma vez tenha ocorrido uma incursão, o que não invalida que a ameaça permanente que pendia sobre as suas cabeças (pelo menos assim percepcionada), que, já velho, quase seis décadas mais tarde escrvesse: «Eram o meu terror esses índios».

* A forma (aparentemente) destemida como quotidianamente os seringueiros se embrenhavam floresta adentro, desfrutando do pavor do menino, fez nascer neste uma admiração pela bravura desses homens rudes -- um pouco como veremos suceder n'A Selva com Alberto e Firmino, uma irmanação progressiva que depois se alargará, vencidos os preconceitos, aos restantes homens.

*Livro prometido a Cândido Rondon (retratado na capa por Artur Bual), «numa hora porventura leviana», promessa recordada pelo general Jaguaribe de Matos -- cartógrafo que acompanhou Rondon -- em 1959, quando da visita de Castro ao Brasil. Apesar de em fim de percurso (e que percurso!), a circunstância de apresentar um romance no mesmo cenário de A Selva trazia o receio de que pudesse ser acusado de explorar um filão que granjeara a maior fortuna crítica e a grande adesão do público. «Vexava-[o]» -- mesmo que se tivessem passado quase 40 anos sobre a primeira edição daquele romance...: «[...] sempre preferi um novo território literário para cada novo romance. Seduz-me auscultar os caminhos que ainda não trilhei, estudar as atmosferas que a minha pena ainda não captou, desvelar o que é inerente a cada terra; atraem-me as próprias dificuldades e assusta-me a eventualidade de repetições.» Quem lhe conhece a obra, sabe que foi assim.

Monday, October 01, 2012

A NARRATIVA NO MOVIMENTO NEO-REALISTA -- AS VOZES SOCIAIS E OS UNIVERSOS DA FICÇÃO, de Vítor Viçoso (27)

Carlos de Oliveira, que felizmente tem tido a fortuna crítica que a outros falta, é também profundamente analisado, sendo convocada toda a sua obra, incluindo a poética. É indubitavelmente il miglior fabbro neo-realista, pelo trabalho sobre a linguagem e sobre a própria estrutura da narrativa, culminando com Finisterra, de 1978. Onde alguns viram a certidão de óbito do neo-realismo, o autor analisa-o como «uma espécie de revisitação transfigurada e decantada a alguns lugares sagrados» (p. 175) da sua obra, em que o que se diz se interpenetra e torna indissociável do como se diz.

(texto lido na apresentação do livro no Café Saudade, Sintra, em 21 de Outubro de 2011)

Monday, September 24, 2012

castrianas - Robert Bréchon

Robert Bréchon, falecido recentemente, celebrado lusófilo e reconhecido pessoano, escreveu, e muito acertadamente, em 1966, que para além das questões sociais, patentes na obra castriana, Castro «é também o romancista da Subjectividade, da consciência de si, da solidão das consciências e dos seus conflitos, e este é sem dúvida o aspecto mais profundo e mas subtil da sua obra.»*,
Para ele, o romancista de A Selva e A Lã e a Neve era um dos que provavam aos incréus a existência de um «miracle de la littérature»: «[…] basta um Stendhal, um Flaubert, um Tolstoi, um Thomas Hardy, um Martin du Gard, um Ferreira de Castro, para que nos sintamos um pouco menos miseráveis e menos sós à face da terra.»*

«Ferreira de Castro el la France», Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro -- 1916/1966, Lisboa, Portugália Editora, 1967.

* tradução minha

Wednesday, September 19, 2012

incidentais #4 -- "o Século Vinte" e pequeno exercício irrelevante de biobibliografia alternativa

do «Pórtico» de O Intervalo
* O protagonista escreve ao autor: Alexandre Novais, por alcunha "o Século XX", autodidacta, colaborador da imprensa obreirista legal e clandestina, antigo secretário da anarco-sindicalista C.G.T. É um operário de escol em que o período foi fértil (basta recordar um jornal como A Batalha). Pede-lhe que conte a sua história pessoal, que tem acompanhado a da centúria em que vive.

* Um projecto que ficou na gaveta, escrito entre 1934 e 1936. Impublicável (como só o foi em 1974...). O Intervalo permanecerá o único capítulo da «Biografia do Século XX», ideia que Castro acalentou nas décadas de 30, 40 e 50.

* Castro assume-se como «escritor farol» (A Epopeia do Trabalho, 1926), aquele que abre caminho, o que "ajuda a ver" (entrevista a José de Freitas, 1966).

* Se esta "biografia", este roman fleuve tivesse ido por diante, haveria A Tempestade? -- não creio.; A Lã e a Neve? -- quase de certeza; A Curva da Estrada? -- improvável, mas quem sabe; A Missão? -- curta novela, é possível, mas fora da série; A Experiência -- porque não?; As Maravilhas Artísticas do Mundo? -- tenderia a dizer que não, mas com o desígnio que lhe subjaz, talvez, embora menos avantajada nas suas mais de mil páginas...; O Instinto Supremo? -- talvez Castro fosse mais tentado a fugir à promessa de escrever um livro a propósito de Rondon; assim como não escreveu a biografia de Kropótkin que Martins Fontes lhe pedira, e para a qual ele chegou a coligir material...

* A verdade é que o «Pórtico» geral de Os Fragmentos, que acolhe O Intervalo é escrito a 16 de Julho de 1969 -- «dia resplandecente para o génio humano da nossa época» -- quando Neil Armstrong, Buzz Aldridge e Michael Collins partiram para a Lua. A mesma crença e a mesma preocupação testemunhal do progresso do homem e das ideias se mantém no fim da vida. Não por acaso ele persistiu (e levou avante a intenção, mesmo que postumamente) que este fragmento do que projectara fosse publicado.




castrianas - Nogueira de Brito

O escritor que deu ultimamente às letras um formoso livro, «Emigrantes», é, antes de tudo, um emotivo severo, pautado, sem arremedos de sentimentalismos pueris, nem devaneios lânguidos de compressão de sentimentos ou de ternura. O que caracteriza a literatura de Ferreira de Castro é a incidência do bom gosto estético na observação filosófica dos factos e dos indivíduos, levada a uma grau de conclusão e apuro exactos, que faltam à maioria dos escritores que trilharam o caminho por onde ele segue, sem um desvio, sem uma tergiversação, sem uma «falha».

«Ferreira de Castro e a sua obra literária» (1928), in Ferreira de Castro e a Sua Obra.


caricatura de Baltasar

Tuesday, September 18, 2012

A NARRATIVA NO MOVIMENTO NEO-REALISTA -- AS VOZES SOCIAIS E OS UNIVERSOS DA FICÇÃO, de Vítor Viçoso (26)

Gostaria de registar que Alves Redol é lido e tratado como merece, com minúcia e desvelo, no ano do seu centenário – dele e dos de Manuel da Fonseca, José Marmelo e Silva e Afonso Ribeiro. Redol que é o rosto do Neo-Realismo e que de acordo com Vítor Viçoso, erigiu o «Ribatejo como símbolo literário» (p. 104). Um pouco, acrescento, como Jorge Amado e a Baía. São topónimos que passaram a ter uma ressonância literária e quase mítica.
(texto lido na apresentação do livro no Café Saudade, Sintra, em 21 de Outubro de 2011)
(imagem)

Friday, September 14, 2012

Jorge Amado e o episódio do Aeroporto de Lisboa referidos no Brasil

aqui

fonte: Álvaro Salema, Jorge Amado -- O Homem e a Obra -- Presença em Portugal,
Mem Martins, Publicações Europa-América, 1982

da esquerda para a direita: o editor Francisco Lyon de Castro, Mário Dionísio*, Alves Redol, Maria Lamas, Jorge Amado, Ferreira de Castro, Carlos de Oliveira, João José Cochofel, Fernando Piteira Santos* e Roberto Nobre.
Sentados em volta, agentes da PIDE, com o inspector Rosa Casaco em fundo.  
Lisboa, Janeiro de 1953

* disse-me António Mota Redol que a identificação de Mário Dionísio e Fernando Piteira Santos estará trocada

Alves Redol e Jorge Amado (e Ferreira de Castro)

aqui

Wednesday, September 12, 2012

incidentais #3 -- uma fé sem deus

sobre "A Legenda do Pórtico" de Eternidade.

* Uma imprecação desesperada à mísera condição humana destinada ao nada, escrita na sequência da morte da companheira de Ferreira de Castro, Diana de Liz, e da septicemia que o acometeu, com episódio suicida pelo meio. 

* Um apelo lancinante ao "irmão longínquo", ao homem do futuro que triunfou "da morte, e dos instintos", o homem racional guiado pela inteligência, liberto da escravidão das paixões -- a mesma inteligência que lhe permitiu, nesse longínquo porvir, viver numa sociedade sem entorses.

* Uma fé sem deus, em suma, com muito ainda de cientismo evolucionista do século XIX, mas, simultaneamente, com um alento de idealismo que hoje, uns meros 80 anos após a sua publicação, não hesitaremos em classifcar como utópico. Castro, porém, não escrevia para duas ou três gerações à frente.

* Chame-lhe utopia quem quiser (ou até ficção científica). Não serei eu, neste final de verão de 2012, ateu e desenganado, quem sorrirá desse alento desesperado, mais perseguido pelos homens que a pedra filosofal.

Tuesday, September 11, 2012

A NARRATIVA NO MOVIMENTO NEO-REALISTA -- AS VOZES SOCIAIS E OS UNIVERSOS DA FICÇÃO, de Vítor Viçoso (25)


A segunda parte, ocupando mais de um terço do livro, trata dos universos da ficção neo-realista, repartidos por 45 autores; esses universos, do campo às fábricas, da aldeia às zonas de fronteira, das minas às cidades, com os seus bairros populares e burgueses, até aos territórios do Império; e trata das vozes sociais dos dominados: jornaleiros, pequenos arrendatários, trabalhadores migrantes, assalariados, operários, pescadores, mineiros, contrabandistas, prostitutas, marginais e vagabundos, clandestinos, estudantes, empregadas domésticas, costureiras. Se a condição dos trabalhadores é um tópico fundamental da narrativa neo-realista, não o é menos o da condição feminina, dominada entre os dominados. O lugar da mulher na ficção neo-realista é de primeira grandeza, com a denúncia do machismo, da organização patriarcal da sociedade, da reificação da mulher, do marialvismo. De Alves Redol a José Cardoso Pires -- este estudado já na terceira parte do livro, «O herdeiros e os Nostálgicos do Neo-Realismo» –, passando por Carlos de Oliveira e tantos outros.


(texto lido na apresentação do livro no Café Saudade, Sintra, em 21 de Outubro de 2011)
foto: Adelino Lyon de Castro, sem título -- daqui.

Monday, September 10, 2012

incidentais #2 -- um romancista descobre-se

da "Nota à 4.ª edição":

*A assunção de uma qualidade particular de romancista: a de «biógrafo [...] das personagens que não têm lugar no mundo».

* O volte-face de um percurso marcado até aí pela perseguição do exotismo e pelas proclamações libertárias para algo de mais profundo e essencial: a busca da dignidade do Homem e de todos os homens, a condição simultaneamente de fragilidade e audácia prometeica que caracteriza o indivíduo ao longo dos tempos. 

* Ter na mão a edição princeps  (1928) e perceber e sentir o que de inaugural teve aquele romance para toda uma literatura que viria a florescer na década de 1940, o neo-realismo, imune, porém à moléstia do sectarismo, armadilha em que caíram outros mais novos do que ele.

* O título, nome colectivo, Emigrantes.

* Romance português mais morto que vivo nesse final de década: naturalismos tardios, pitorescos gastos. Sobravam Aquilino, com muito ainda para dar; Brandão, às portas da morte, de obra rematada e memórias deixadas à posteridade; Teixeira-Gomes, o hedonista exilado e livre, ressurecto para a literatura. O romance psicologista -- que nunca foi estranho à narrativa castriana -- da presença, o Elói de João Gaspar Simões, o notável Jogo da Cabra Cega, de Régio, aguarda(m) vez.

Friday, September 07, 2012

A NARRATIVA NO MOVIMENTO NEO-REALISTA -- AS VOZES SOCIAIS E OS UNIVERSOS DA FICÇÃO, de Vítor Viçoso (24)


Quero com isto significar que a adesão ao ideário marxista enquadrado pelo Partido Comunista, triunfantes à esquerda nos anos da guerra, era natural e quase inevitável. A historiografia não se compadece com anacronismos. Se hoje é simples dizer que houve uma espécie de pecado original no neo-realismo, que foi o de ter servido ou apoiado um sistema político trágico pelo logro que representou, e incompatível com aquilo que Ferreira de Castro designava nos anos quarenta como «a mais nobre aspiração humana» — a liberdade –, é desonesto ou incompetente obliterar a conjuntura em que todos aqueles autores iniciaram o seu percurso literário e artístico. E não ficará mal dizer – embora irrelevante para o que nos traz aqui hoje, porque se trata do desenvolvimento de percursos individuais – que, se alguns andaram perto – talvez Vergílio Ferreira e Fernando Namora –, cedo se afastaram; sem esquecer os que se desvincularam do PCP quando tiveram conhecimento da verdadeira natureza do estalinismo após a publicação do Relatório Secreto do XX Congresso do PCUS, apresentado pelo secretário-geral Nikita Khruschev, em 1956. Tal foi o caso de Mário Dionísio, por si relatado na Autobiografia.

(texto lido na apresentação do livro no Café Saudade, Sintra, em 21 de Outubro de 2011)

Wednesday, September 05, 2012

incidentais #1

Do  «Pórtico» de A Curva da Estrada.

* Uma espécie de arqueologia do romance, radicado em velhas peças de teatro das décadas de 1920-1930 que nunca chegaram a publicar-se -- com excepção de Sim, Uma Dúvida Basta, já em 1994, com introdução de Luiz Francisco Rebello.

* A reconversão do texto dramático em narrativa dá a Ferreira de Castro uma outra e mais ampla respiração -- livre dos diálogos e das didascálias --, justificada pelo que ele entende ser uma obra romanesca: «[...] o romance é uma carroça mágica, onde se pode carregar, livremente, ligadas apenas por um fio, todos os minutos da Eternidade, o visível e o invisível, o palpável e o impalpável, as coisas mais díspares, de todas as formas, de todas as cores, de todas as dimensões e de todas as profundidades.»

* O escritor como um demiurgo, um deus operoso, um criador de mundos.

* Referência a Amélia Rey Colaço e a Robles Monteiro.


Monday, September 03, 2012

A NARRATIVA NO MOVIMENTO NEO-REALISTA -- AS VOZES SOCIAIS E OS UNIVERSOS DA FICÇÃO, de Vítor Viçoso (23)

Vejamos as idades dos escritores desta geração: em 1936, Soeiro Pereira Gomes, o mais velho, tinha 27 anos; Alves Redol e Manuel da Fonseca, 25; Faure da Rosa e Manuel do Nascimento, 24; Álvaro Cunhal (Manuel Tiago) e Marmelo e Silva, 23; Joaquim Namorado, 22; Leão Penedo, Mário Dionísio e Vergílio Ferreira, 20; Alexandre Cabral, Manuel Ferreira e Romeu Correia, 19; Joaquim Lagoeiro, 18; Fernando Namora, 17; Sidónio Muralha, 16; Antunes da Silva, Carlos de Oliveira e Mário Braga, 15. Refira-se que os dois libertários abordados neste livro eram ambos nascidos no século XIX: quando começa a Guerra Civil de Espanha, Assis Esperança já tem 44 anos e Ferreira de Castro, 38.
(texto lido na apresentação do livro no Café Saudade, Sintra, em 21 de Outubro de 2011)

Saturday, September 01, 2012

correspondências - Reinaldo Ferreira (Repórter X)

[...] Eis-me de volta de uma grande viagem -- a mais interessante de todas as que realizei até hoje. Foi mais longa do que eu julgava -- mas, graças a Deus, não fui comido pelos antropófagos como dizem que se espalha por Lisboa. [...] (Paris, 3 de Novembro de 1925)

100 Cartas a Ferreira de Castro, Sintra, Câmara Municipal / Museu Ferreira de Castro, 1992.

 
imagem daqui



Friday, August 10, 2012

Jorge Amado, CANTIGA DA AMAZÔNIA (1938)


NEM O MISTERIO DOS RIOS SE RENOVANDO,
NEM LA TERRA NINA NASCENDO A CADA MOMENTO NO PRINCIPIO DO MUNDO DA [AMAZONIA,
NEM O PITORESCO DOS LIRICOS NAVIOS ATRAZADOS,
NEM A FLORESTA DE TODAS AS ALUCINAÇÕES,
NEM O PAGÉ, O BOTO, A COBRA GRANDE,
NEM MESMO OS CABELOS DA ULTIMA YARA, DE OCULOS AZUES, VOGANDO NO RIO [DE MISTERIO EM LANCHA-AUTOMOVEL,
TÃO POUCO EL DOLOR E LA SANGRE DE LOS INDIOS DE RIVERA,
DOS CEARENCES DE FERREIRA DE CASTRO,
NENHUM MOTIVO ETERNO NA MINHA CANTIGA DO AMAZONAS.

APENAS O LOUVOR DO AMIGO:
O CIVILIZADO QUE PAROU NA SELVA,
FILHO DAS GLORIAS DUMA RAÇA FORTE,
MÃOS CHEIAS DE CULTURA E DE BOM GOSTO,
AQUELE PARA QUEM A HUMANIDADE NÃO É UMA PALAVRA VÃ,
GRANDE DA BONDADE,

PORTUGUEZ!

A CERTEZA DE PODER DIZER NA HORA DA MAIS DENSA ANGUSTIA:
EMIDIO VAZ D'OLIVEIRA, AMIGO,
AMIGO!

Estrada do Mar (1938)

Tuesday, July 03, 2012

A NARRATIVA NO MOVIMENTO NEO-REALISTA -- AS VOZES SOCIAIS E OS UNIVERSOS DA FICÇÃO, de Vítor Viçoso (22)

A Espanha, aqui ao lado, despertou as consciências de muitos destes jovens escritores, e o marxismo-leninismo aparecia aureolado do prestígio de uma doutrina humanista que pretendia a superação da sociedade classista, iníqua, fautora de um mundo de desigualdades e opressão, além do sedutor apelo da heroicidade resistente à barbárie irracional e retrógrada que se levantava no teatro de operações do país vizinho. (E não devemos também esquecer que a propaganda soviética sustentava que o nazi-fascismo e sistemas demo-liberais eram, no fundo, as duas faces da mesma moeda da dominação do sistema capitalista.) Impõe-se, por isso esta pergunta: quem, com a generosidade da juventude, sensível às injustiças com que era confrontada ao pé da porta, no país e no mundo, (quem)  não se deixaria seduzir pelo apelo internacionalista e libertador do movimento comunista internacional?


(texto lido na apresentação do livro no Café Saudade, Sintra, em 21 de Outubro de 2011

Tuesday, June 26, 2012

Alexandre Cabral: Camilo, mas também Ferreira de Castro (4)

Se os grandes escritores valem pela sua obra, também se reconhecem pela qualidade de quem os estuda. Não sendo a camiliana passiva tão vasta quanto a sua congénere queirosiana, os nomes que povoam aquela, de Alberto Pimentel a Abel Barros Baptista, passando por António Cabral, Sousa Costa, Jacinto do Prado Coelho, Alexandre Cabral e João Bigotte Chorão, entre tantos outros, reflectem com nitidez a espessura do que se fala e de quem se fala.

Vária Escrita #6, Sintra, Câmara Municipal, 1999.

Thursday, June 21, 2012

A NARRATIVA NO MOVIMENTO NEO-REALISTA -- AS VOZES SOCIAIS E OS UNIVERSOS DA FICÇÃO, de Vítor Viçoso (21)

 Em Portugal, o Estado Novo está consolidado desde 1933, a tropa domesticada e as oposições cada uma para seu lado – divisão que a caracterizou nos 48 anos de ditadura, exceptuando o período de 19145-49, marcadas pela acção do MUD e do apoio à candidatura de Norton de Matos. Os republicanos de várias proveniências, grande parte desprestigiada pelo falhanço clamoroso da I República, haviam sido neutralizados – pela prisão, pelo exílio mas também pela cooptação por parte do novo poder; os anarquistas, a grande força organizada do trabalho durante esses dezasseis anos, principalmente através da central anarco-sindicalista CGT, detentora do influente jornal diário A Batalha, não resistira à repressão e à clandestinidade. A Revolta da Marinha Grande – articulada já com o PCP, não sem graves dissensões entre ambas as forças – seria o canto do cisne da corrente libertária enquanto movimento de massas; o PCP, finalmente, fundado em 1921, seria o principal veículo de resistência, graças a uma organização rigorosamente centralizada e a uma rede internacional de assistência e informação sediada em Moscovo.

(texto lido na apresentação do livro no Café Saudade, Sintra, em 21 de Outubro de 2011)

(imagem)

Thursday, June 14, 2012

Ferreira de Castro na "Cidade de Lilipute" (4)



Ferreira de Castro escreveu também livros de viagens, um dos quais -- A Volta ao Mundo (1940-1944) -- permanece como o mais significativo deste século num género com tradições centenárias na literatura portuguesa.

in Ferreira de Castro, Macau e a China, Taipa, Câmara Municipal das Ilhas, 1998.

Monday, June 04, 2012

A NARRATIVA NO MOVIMENTO NEO-REALISTA -- AS VOZES SOCIAIS E OS UNIVERSOS DA FICÇÃO, de Vítor Viçoso (20)


Estamos, pois, num tempo de crise das democracias liberais, postas numa tenaz entre os totalitarismos nazi e fascista de brutalidade sem máscara, de regimes autoritários de direita, e o totalitarismo soviético. E essa crise terá a sua máxima evidência precisamente na Guerra Civil de Espanha, com a participação no terreno, directa ou indirectamente, dos dois blocos políticos, sem que a França e a Inglaterra, principais mentores de um inoperante Comité de Não-Intervenção em Londres, lograssem sequer um mínimo de entendimento quanto às atitudes a tomar.

(texto lido na apresentação do livro no Café Saudade, Sintra, em 21 de Outubro de 2011)