Wednesday, January 23, 2013

do jornalismo operário

Na recensão ao fac-simile publicado pela Câmara Municipal de Beja, em 2012, de A Felicidade de Todos os Seres na Sociedade Futura, de Gonçalves Correia, escreve António Cândido Franco, no último número de A Batalha:
«O jornalismo operário português da primeira metade do século XX deu um grande romancista de dimensão mundial, Ferreira de Castro, autor de A Selva (1930), o escritor português mais traduzido no mundo em meados do século XX; esse mesmo jornalismo produziu ainda escritores de excelente cepa, como Manuel Ribeiro, Assis Esperança, Julião Quintinha, Mário Domingues ou Jaime Brasil, e publicistas combativos e letrados como Alexandre Vieira, Neno Vasco, Campos Lima ou Cristiano Lima. Gonçalves Correia, pela habilidade e pela pureza da linguagem, pela ginástica da frase e pelo quilate das imagens, bem merece ser engastado como estrela de primeira grandeza nesta brilhante plêiade de escritores -- quase todos autodidactas como Correia.»

A Batalha, VI série, #252, Lisboa, Nov.-Dez. 2012.

Thursday, January 17, 2013

incidentais # 15 -- revoluções, chuva, mais remoques de ontem & de hoje

(sobre o capítulo I de O Intervalo)

*incipit: «As derradeiras notícias tivemo-las às dez da manhã.»

* Uma homenagem (já por 1936) às gerações de anarquistas, anarco-sindicalistas e sindicalistas revolucionárias, a que ele pertenceu, e que atravessariam uma noite ainda mais cruel, porque mais solitária. (1)  A acção decorre no período da Ditadura Militar e da II República espanhola.


*Alexandre Novais, "o Século XX", operário (torneiro-mecânico), antigo secretário da CGT, marcado pela policia; também alter ego de Ferreira de Castro, como já escrevi. Para já, em primeiro capítulo, uma coincidência de idades e uma viuvez partilhada (em circunstâncias diferentes, embora).

*Fiasco grevista, unidade na acção entre anarco-sindicalistas e comunistas (o que historicamente sucedeu, todavia com desentendimentos graves) («Mas os políticos é que me estão cá atravessados! Eu bem dizia que isto de políticos não dava nada!...», vocifera o militante Francisco Soares, pela "traição" dos políticos e contra o sai-não-sai dos militares -- militares, que levaram 48 anos a fingir que saíam dos quartéis...

*No rescaldo da derrota, Novais e alguns companheiros estão refugiados na habitação do companheiro Francisco Soares  um ambiente opressivo num tugúrio operário -- descrito com a segurança de meia dúzia de pinceladas (como se está longe da exasperante minúcia naturalista das habitações dos bairros operários, à Abel Botelho...).

* O cinzento do céu, a chuva miudinha que dá cabo dos nervos perpassa por todo o capítulo, acentuando a angústia do momento de incerteza por que passam aqueles insurrectos: «[...] a chuvinha persistia, escurecendo o dia, agarrando-se aos sentimentos, tornando tudo viscoso.» /
«Até admiti ser devido à chuva, sobretudo à opressora luz soturna que ela criava à nossa volta, o aumento da minha turbação cada vez mais expectante.» ("Toda a natureza é escrava da luz", dirá ele numa entrevista a Álvaro Salema, em 1973...)

* Procurado pela polícia como um dos principais dirigente grevistas, é impedido por um companheiro de, em desespero, dirigir-se à morgue, onde jaz Maria, sua companheira, atingida pela polícia: «Tu não te pertences!», dizia-lhe Leontino, pequeno funcionário público:  e o protagonista, que assume em O Intervalo o papel de narrador, examina-se intimamente: «Não nos pertencíamos a nós, mas ao nosso ideal, aos espoliados, à Humanidade que sofria, à criação dum mundo novo, onde a justiça estivesse de pé, a colmeia vivesse em igualdade e o amor aplainasse a obra feita, durante um ror de séculos, por um construtor de abismos.»

* O Intervalo esteve para intitular-se  -- revelou Jaime Brasil nos anos quarenta-- «Luta de Classes», e ainda bem que não vingou, não faria jus à grandeza literária do autor. Mas eu percebo Brasil: anarquista escaldado e de couraça dura, queria mostrar aos polícias que teorizavam o neo-realismo que não haviam sido eles a descobrir a pólvora. Conhecendo bem o seu esquema mental, deveria estar avisado sobre a forma como encaravam a História e a verdade dos factos: simples pormenores que se apagam ou manipulam conforme as conveniências da acção...

(1) Nem de propósito, acabo de ler:
«O anarquismo foi objecto duma implacável repressão nas primeiras décvadas do séc. XX. Ao longo dos anos 20 e 30, milhares de anarquistas ou de supostos tais foram presos, deportados para sítios inóspitos, morto. Essa repressão fez-se com pretextos diversos -- vagas de atentados da legião vermelha e até da camioneta fantasma, o 3 de Fevereiro no Porto e em Lisboa, a revolta da Madeira, o encerramento dos sindicatos livres e o 18 de Janeiro de 1934, o atentado a Salazar, etc. / [...] / Evidentemente que isso não poderia deixar de ter fortes reflexos na actividade anarquista que ficou reduzida à sua expressão mínima, com um Comité Confederal clandestino que só muito esporadicamente reunia, e sem capacidade para publicar de forma continuada e regular jornais de propaganda.»  José Hipólito dos Santos, «A participação de libertários em movimentos para derrubar a ditadura salazarista», A Batalha # 252, Lisboa, Nov.-Dez. 2012, p. 3.

Sunday, January 13, 2013

Viajar com Ferreira de Castro (4)

É, pois, com Emigrantes que Castro se encontra, ao aproveitar a sua própria experiência para contar a história de Manuel da Bouça, figuração de um arquétipo. E é essa condição simbólica que torna Ferreira de Castro um autor pioneiro, um dos primeiros -- e não só na literatura portuguesa -- a optar pelo romance social, com todas as consequências que daí puderam advir. Diga-se apenas que foi ele quem em Portugal iniciou o neo-realismo no romance, sendo lido atentamente por jovens escritores nordestinos no Brasil que, por sua vez, acabaram por revolucionar a narrativa desse país e influenciar fortemente os jovens escritores portugueses da década de 40.*

* Emprego aqui a expressão neo-realismo no sentido lato, isto é: arte que procura intervir socialmente para modificar e subverter o statu quo, e não neo-realismo na concepção fechada de expressão artística, não apenas da dialéctica marxista, mas de veículo orientador das teses jdanovistas.

Viajar com... Ferreira de Castro, Porto, Edições Caixotim e Delegação Regional da Cultura do Norte,[2004].

Saturday, January 05, 2013

Para além das ortodoxias: Ferreira de Castro e Francisco Costa (4)

Portinari,
painel da Igreja de são Francisco de Assis
Belo Horizonte
daqui
«Cristão que se ignora», dirá, muitos anos depois, Francisco Costa de Ferreira de Castro (9), não por acaso o romancista de A Lã e a Neve será convidado a participar num volume comemorativo do 7.º Centenário da Morte de Santa Clara de Assis a editar pelos franciscanos portugueses) (10) ; e lembremos ainda a tese de Bernard Emery, que aborda a obra de Castro como a de um autor «luso-tropical» -- segundo os conceitos do maravilhoso Gilberto Freyre -- , na qual o «escritor ateu, mas impregnado de cristianismo» participa dessa «fraternidade dos pobres» instaurada por São Francisco de Assis. (11)

(9) Entrevista a O Primeiro de Janeiro, Porto, 24 de Junho de 1979.
(10) Carta de Frei Armindo Augusto a Ferreira de Castro, em 23 de Maio de 1953, apud Ricardo António Alves, Anarquismo e Neo-Realismo -- Ferreira de Castro nas Encruzilhadas do Século, Lisboa, Âncora Editora, 2002, pp. 189-190.
(11) Bernard EMERY, «A noção de luso-tropicalismo: realidade cultural ou utopia sócio-política?», Miscelãnea Sobre José Maria Ferreira de Castro, Grenoble, Centre de Recherche et d'Études Luso-Tropicales, , 1994, pp. 111-127.

Vária Escrita #10,  Sintra, Câmara municipal, 2003.

Wednesday, January 02, 2013

Roberto Nobre -- Uma vida por imagens (4)

imagem daqui
1. O Algarve, que no século XIX tivera João de Deus (São Bartolomeu de Messines, 1830 / Lisboa, 1896) como poeta laureado e nos alvores da centúria seguinte veria despontar o esteticismo ainda hoje inultrapassado de Manuel Teixeira-Gomes (Portimão, 1860 / Bejaia, 1941) -- um dos autores preferidos de Nobre que lhe ilustrou «Uma copejada de atum» nas páginas da Seara Nova (2) -- repartia-se pela presença suave de poetas como Bernardo de Passos (São Brás de Alportel, 1876 / Faro, 1930) e João Lúcio, (Olhão, 1880-1918) e uma nova e trepidante geração que em Faro, em 1916, nas páginas do Heraldo, respondia ao desafio de Orpheu, antecipando o Portugal Futurista na designação marinéttica. Carlos Porfírio (Faro, 1895-1970) e Mário Lyster Franco (Faro, 1902-1984) coordenavam e publicavam nessa página, conseguindo colaboração de Fernando Pessoa, Almada Negreiros e (neste caso, póstuma) de Mário de Sá-Carneiro (3). José Dias Sancho (São Brás de Alportel, 1898 / Faro, 1929) e Bernardo Marques (Silves, 1899 / Lisboa, 1962) viriam engrossar essa fileira de rebeldia estética, em que marcavam também posição ideológica Julião Quintinha (Silves, 1885 / Lisboa, 1968), da geração anterior, e Assis Esperança (Faro, 1892 / Lisboa, 1975). (Não sejamos injustos a ponto de esquecermos o lacobrigense Júlio Dantas (Lagos, 1876 / Lisboa, 1962), eminência parda da cultura portuguesa do século XX, pelo peso institucional que alcançou, como pelas resistências que suscitou e de que o célebre Manifesto  de Almada é apenas a ponta do iceberg. Teve, aliás, como antecessor na presidência da Academia das Ciências o também algarvio Coelho de Carvalho (Tavira, 1855 / Arade, 1934).

(1) Ferreira de Castro e Roberto Nobre, Correspondência (1922-1969), introdução, leitura e notas de Ricardo António Alves, Lisboa, Editorial Notícias e Câmara Municipal de Sintra, 1994, p. 13.
(2) Ver António Ventura, O Imaginário Seareiro -- Ilustrações e Ilustradores da Revista Seara Nova (1921-1927), Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1989, p.p. 105-106.

in Roberto Nobre (1903-2003), São Brás de Alportel, Câmara Municipal, 2003.