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Saturday, March 09, 2013

incidentais #17 - campo e cidade, sonho e realidade

[do cap. I de A Lã e a Neve, 1947]

* Incipit: «Logo que as cabras e as ovelhas entestaram à corte, o «Piloto» deu por findo o seu trabalho.»

* Regressado do serviço militar, cumprido no CIAAC de Cascais, Horácio, pastor de Manteigas, é farejado, encontrado, saudado e requestado pelo velho companheiro, que o surpreende com Idalina. Só para o cão ele não mudou; para a noiva e para os pais, há algo de diferente: abertos os olhos noutras paragens, a pobreza da existência torna-se-lhe inaceitável. Mudar de vida, mudar a vida, deixar o pastoreio nas faldas da serra e empregar-se na fábrica, mesmo que em Manteigas, ou, quem sabe, na Covilhã, surge para o protagonista do romance como a única oportunidade de alguma vez levantar a cabeça, de fugir da mísera mesquinhez que preenche os dias dos pais e dos outros como eles.

* A cidade como factor de mudança. Não há, nem poderia haver, um bucolismo palerma que se conformasse com a vida rudimentar aldeã. E Castro sabe-o como ninguém, pois foi dela que saiu, aos 12 anos incompletos -- para algo ainda mais opressivo. Mas, para que não haja confusões, o escritor não rejeita o campo -- pelo contrário --, senão a pobreza que lhe subjaz no Portugal dos anos quarenta.

* A cidade é também factor de estranhamento: quem de lá vem, mudou; quem ficou, sente a mudança, sem que sinta, por sua vez, a imobilidade da vida que leva. Tal será sempre um factor de tensão.

 * Aos planos do pastor atravessa-se um compromisso financeiro, um empréstimo tomado pelos pais ao antigo patrão, na sua ausência, por motivos de força maior, sendo o trabalho de Horácio o garante da  liquidação, haja ou não -- presume,-se nesta fase do romance -- trabalho nos lanifícios.

* Problemática muito castriana, a dicotomia entre sonho e realidade, o homem aprisionado ao atavismo cultural, aos compromissos que se tomam; e, como sempre, alguém de mais teres & haveres ou uma convenção social, ou ambos, exercem pressão sobre quem pouco ou nada tem.

* Temos, para já, um problema posto, que irá complexificar-se à medida que a narrativa avança. E que narrativa! -- um dos grandes romances do século XX português e uma das obras maiores de Ferreira de Castro, significativamente o seu segundo livro mais traduzido, à frente do celebrado Emigrantes e atrás, naturalmente, de A Selva.

* Mais uma nota para a mestria do estilo, para o cuidado trabalho sobre a linguagem. Eis as casas pobres de Manteigas no limiar da noite:

     «Tinham começado a descer a congosta. Era uma rua estreitíssima, que cheirava a burros, a porcos e a fumo de ramos verdes. Dela partiam outras tortuosas vielas, que terminavam em pátios ou dobravam em cotovelos, cruzando-se, avançando para sombrios recantos, numa sugestão de labirinto. As casas, negregosas, velhentas, colavam-se umas às outras, com a parte inferior de granito escurecido pelo tempo e a parte cimeira com folhas de zinco enferrujadas a revestirem as paredes de taipa, mais baratas do que as de pedra. Este e aquele casebre exibiam apodrecidas varandas de madeira e outros, mais raros, umas escadas exteriores, coroadas por um patamarzito quadrado, logradoiro do mulheredo nas horas de paleio com as vizinhas. Algumas das portas e janelas estavam abertas e, atrás delas, pairava a rúbida claridade do fogo que, lá dentro, cozinhava a ceia. Figuras de homens, mulheres e crianças, as suas caras tocadas pelo fulgor do lume, andavam no acanhado espaço doméstico, cirandavam numa confusão de movimentos humanos e de trapos dependurados.»

Wednesday, March 18, 2009

de passagem - do «Pórtico» de A LÃ E A NEVE (1947)

Os primeiros teares criaram-se, em já difusos e incontáveis dias, para a lã que produziam os rebanhos dos Hermínios. O homem trabalhava, então, no seu tugúrio, erguido nas faldas ou a meio da serra. No Inverno, quando os zagais se retiravam das soledades alpestres, os lobos desciam também e vinham rondar, famintos, a porta fechada do homem. A solidão enchia-se dos seus uivos e a neve reflectia a sua temerosa sombra. A serra, porque só a pé ou a cavalo a podiam vencer, parecia incomensurável, muito maior do que era, e de todos os seus recantos, de todos os seus picos e refegos brotavam superstições e lendas -- histórias que os pegureiros contavam, ao lume, a encher de terror as noites infindas.

Ferreira de Castro, A Lã e a Neve, 15.ªedição, Lisboa, Guimarães Editores, 1990.