Wednesday, December 29, 2010

«A cruel indiferença do universo»: Raul Brandão e Ferreira de Castro (3)

Referindo-se ao que de específico existe na sua obra, à Dor e ao Sonho, à Verdade e à Descrença (assim mesmo, com maiúsculas, ibidem, p. 38), o novíssimo escritor referenciava os espectros que a povoam:

«Raul Brandão não criou personagens. Pegou na Desgraça, na Dor, no Ódio, na Cobiça, na Perversidade e pregou-lhes uma pernas cambaias. E abriu-lhes um boca disforme. » (ibid., p. 36).

Declarando não conhecer Raul Brandão, desejando mesmo não o conhecer para não se desiludir com uma mais que previsível fragilidade humana pudesse «manchar a transcendência de Raul Brandão pensador» (ibid., pp. 37-38), o texto em apreço -- aliás, previamente publicado na efémera revista A Hora (1) -- estaria na origem de uma amizade só interrompida em 1930, com a morte do criador da Candidinha: «ficara Raul Brandão meu amigo», recordará Castro décadas mais tarde, evocando este primeiro escrito. (2). Após ter lido o artigo, Brandão escreveria ao seu autor:

«São raras efectivamente as pessoas que em Portugal estimam os meus livros, mas essas bastam-me quando compreendem não o que vale a minha obra necessariamente imperfeita, mas o esforço que faço, para arrancar alguns farrapos ao limbo...» (3)

(1) No número 3, em 26 de Março de 1922: «Os grandes peninsulares -- Raul Brandão». Muitos dos textos do Mas... saíram previamente n'A Hora. Por outro lado, apesar de o livro ostentar a data de 1921 no frontispício, viria apenas a publicar-se no ano seguinte, uma vez que Castro foi pagando a sua impressão à medida das disponibilidades financeiras.
(2) Ferreira de Castro, «[Raul Brandão]», A Unidade Fragmentada. Dispersos de Ferreira de Castro, antologia e apresentação de Ricardo António Alves, Sintra, Câmara Municipal, 1996, p. 235. Texto originalmente publicado em Raul Brandão -- Homenagem no Seu Centenário, Guimarães, Círculo de Arte e Recreio, 1967, pp. 52-54.
(3) Nespereira, 28 de Março de 1922. In Ricardo António Alves (ed.), 100 cartas a Ferreira de Castro, Sintra, Câmara Municipal, / Museu Ferreira de Castro, 1992, p. 9. (Cota do documento: MFC/B-1/13904/Cx.297/Doc.1).

Sunday, December 19, 2010

Neo-realismo: contributo para dificultar um problema (3)

Dir-se-á que a primeira hipótese [Ferreira de Castro, escritor neo-realista] é absurdamente anacrónica, pois a expressão «neo-realismo», criada por Joaquim Namorado (1), visava encobrir uma outra, o «realismo socialista» e soviético. Assim entendido o neo-realismo, Castro, que não foi um marxista, dificilmente aderiria aos seus pressupostos políticos. Por outro lado, se ele foi um precursor, não deixa de ser bizarro ter antecipado na estética uma via discordante da sua própria ideologia, tanto mais que quem abre caminhos, trilha-os forçosamente, mesmo que depois acabe por se afastar deles -- e não foi o caso.
É evidente que estamos perante um afunilamento do conceito, que fazia algum sentido nos anos da guerra e imediatamente posteriores, sendo explicável de um ponto de vista histórico-cultural e político, quando existia um acentuado espírito de grupo e uma forte dialéctica na vida intelectual portuguesa. Hoje não se justifica continuarmos essa abordagem duma forma que não seja totalmente livre e isenta dum "pensamento único".

(1) Ver Alexandre Pinheiro Torres, o Movimento Neo-Realista em Portugal na Sua Primeira Fase, 2.ª edição, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983. 


Anarquismo e Neo-Realismo -- Ferreira de Castro nas Encruzilhadas do Século, Lisboa, Âncora Editora, 2002. 

Wednesday, December 08, 2010

Um relato

duma viagem à Amazónia, por quem conheceu Ferreira de Castro, aqui.