Friday, November 30, 2012

incidentais #11 - do homem isolado ao inconformismo, passando por poetas da «Claridade»

Do «Pórtico» de Terra Fria (1934) -I

* Castro sente a atracção pelo que está afastado da "civilização", ilha ao abandono no oceano ou aldeia remota isolada por montanhas, não por exotismo, mas pelo perscrutar dos efeitos que o apartamento provoca no espírito humano.

* Uma grande diferença, porém: a ilha impele à evasão de si, à errância, ansiada ou efectivamente concretizada.

*(Ocorrem-me agora os bravos poetas caboverdianos da Claridade:
«O drama do Mar, / o desassossego do Mar, / sempre / sempre / dentro de nós!», Jorge Barbosa, «Poema do Mar», Ambiente, 1941 -- Barbosa, que Ferreira de Castro muito admirava);
«Mar parado na tarde incerta.», Manuel Lopes, Crioulo e Outros Poemas, 1964);
«Mar, tu és o que fica.», Osvaldo Alcântara, pseudónimo de Baltazar Lopes, Colóquio / Letras #14, 1973;
«Canivetinho / Canivetão / Vá / Té / França. / A única esperança...», Pedro Corsino Azevedo, Mensagem #6, 1964
-- recolha de Manuel Ferreira, No Reino de Calibã vol. I.)

*Voltando a Ferreira de Castro: «A nostalgia deve ter nascido numa ilha e só numa pequena ilha se compreende, integralmente, o subtil significado da distância.» Pelo contrário, nos interiores continentais, e em especial nesses vales circundados por montanha, queda-se atabafado «o homem metido em si próprio, o homem que reduziu a vida à árdua conquista do pão quotidiano e o enigma do infinito a uma simples crença, para dele se servir nos momentos de vicissitude ou quando a morte lhe bate à porta.... ». 

*Espécime humano que ficou no ontem, «página viva de antropologia», «farrapo» de existência pretérita com o qual Ferreira de Castro -- homem de cidade, intelectual e cosmopolita, mas que fora um pobre filho de camponeses, expatriado na infância -- não consegue deixar de irmanar-se, «em compreensão e amor» --, até porque, paulatinamente, pela «força da evolução que o vai penetrando», o surpreende em lenta mutação -- um gesto, um olhar, um dito --, «num trabalho lento de  pua furando granito.»

* No país, duas concepções: tradicionalista, uma, refractária à contaminação pelo progresso;  inconformista outra, considerando que a resignação não é da natureza humana. Mas isto é já outra conversa, e eu ainda nem acabei de falar do «Pórtico» de Terra Fria.

Wednesday, November 28, 2012

Recordar Rocha Martins (4)

Politicamente um monárquico liberal, não se eximiu a colaborar no jornal anarco-sindicalista A Batalha, como -- após um inicial bom acolhimento à Ditadura Militar -- a juntar-se às hostes da Oposição, essencialmente republicana, após verificar a natureza autoritária do Estado Novo, contrária ao seu liberalismo de princípio. Ficou para a posteridade o pregão dos ardinas lisboetas, anunciando o República, cada vez que incluía prosa sua: «Fala o Rocha! [O Salazar está à brocha*]».

*falta no original

Monday, November 26, 2012

Valle-Inclán e Portugal



Acaba de ser publicado em Lugo, pela Editorial Axac, o estudo de Rosario Mascato Rey, Valle-Inclán Lusófilo: Documentos (1900-1936). Profunda conhecedora da obra Ramón del Vallé-Inclán, procede a um levantamento das relações portuguesas do autor de Sonta de Outono. Ferreira de Castro, é claro, que por ele nutria grande admiração, mas também Leal da Câmara, Novais Teixeira, Guerra Junqueiro, António Ferro e Armando Boaventura. Oportunamente escreverei a propósito.

Friday, November 23, 2012

incidentais #10 - de como a propósito do pórtico de «A Tempestade» se fala em projectos adiados, numa bisavó, terminando com mais gravidade

(do «Pórtico» de A Tempestade, 1940)

* Já aqui se falou, e voltará a falar-se, da apresentação que Ferreira de Castro escreveu para abrir o seu romance malquisto. Essa má-vontade tem tanto de injusto para o livro, uma narrativa psicologista -- traço que esteve sempre presente na obra castriana, basta lembrar Eternidade --, como razão de ser. Só para recordar: O Intervalo, fragmento da projectada e nunca realizada «Biografia do Século XX» estava na gaveta, de onde saiu apenas em 1974, integrado precisamente n'Os Fragmentos; o seu desígnio como romancista chocava com o tempo que lhe era dado viver: Estado Novo, Guerra Civil de Espanha, II Guerra Mundial; para sobreviver, teve de dedicar-se à literatura de viagens; só no pós-guerra, com a abertura do regime, A Lã e a Neve pôde trazer à luz a arte do romance tal como ele a concebia. Para trás, este negregado A Tempestade, escrito com raiva [sic]. Adiante com as injustiças do criador para com a criação...


* Redigido sob a forma duma carta a um "amigo" médico que lhe servira de cicerone no Cairo (1935). Seguem-se, após referência à recém construída ponte de Kars-en-Nil , cinco parágrafos impressivos sobre o Egipto, território que já dera um capítulo a Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937): «Um vaporzito, com graciosidade de gaivota e calentura de forno, largou de ao pé da Kars-en-Nil, apitando aqui e ali, que o tráfego fluvial era grande em frente da cidade, começou a subir o rio sagrado.»

* As referências ao felá, recordaram-me esse mesmo capítulo dos Pequenos Mundos e de como já há décadas pensei em fazer a comparação com O Egipto de Eça de Queirós (em tempos propus-me realizar uma grande trabalho sobre este póstumo queirosiano; não passou de um estudo exíguo que prometia, e que acabei por não cumprir, generosamente publicado por Bernard Emery na sua Taíra).

*Essas referências de intenção social servem para lembrar o amigo --e também de justificação a si próprio e advertência mais ou menos velada ao leitor -- que fora prometido um livroque espelhasse os desígnios de emancipação humana que Castro adoptara para si como homem e escritor; e que uma conjuntura desfavorável impedia de concretizar (com efeito, O Intervalo será escrito em 1936, um ano depois dessa estada no país dos faraós). Promessa que não fora cumprida, interrompida pela viagem como forma de sustento e substituída (terminando com as palavras finalizadas em ida -- aliás, o nome duma bisavó brasileira que não conheci...) por ATempestade, para mágoa do autor, provavelmente comvencido de que o romance não estava à altura dos pergaminhos de quem escrevera Emigrantes, por exemplo: «Fico bastante pesaroso, creia, por saber que você, sempre tão atarefado, sempre à roda de gente que sofre, vai perder, por amizade para comigo, tempo a lê-lo-- tempo que poderia empregar melhor.» Desfecho que provocará o desagrado de Roberto Nobre, que, numa carta, lhe diz ter ele, Ferreira de Castro, inoculado o vírus da ideologia que perfilhou, e que nunca desaparecerá, mesmo que ele se decida a escrevr sobre os astros  celestes (ver Correspondência (1922-1969))

* Outro aspecto importante deste prólogo é o da concepção castriana do romance como documento de uma época, fonte para o futuro, crítico que era do género historiográfico então prevalecente, narrativa biográfica, política e institucional em que o povo (ontem, o terceiro estado) estava ausente. E com efeito, pesem as excepções, a história social só conheceria impulso decisivo após a afirmação da Escola dos Annales. Daí também um certo amor à filosofia e a ilusão (ou vontade dela) de que o conhecimento, de si, do outro, do Universo, pode modificar a essência do ser humano.

* Finalmente, alusão a um tema a que voltará dez anos mais tarde, em A Curva da Estrada: como à medida que vamos envelhecendo vamos também regredindo nas convicções: no romance, a questão política, o conservadorismo que a idade pode induzir; no pórtico de A Tempestade, o tema religioso, o escapismo do sobrenatural.

Tuesday, November 20, 2012

«A cruel indiferença do Universo»: Raul Brandão e Ferreira de Castro (4)



Na pequena parte da livraria pessoal que se conserva no Museu Ferreira de Castro, em Sintra, existem alguns livros de
R aul Brandão, entre os quais a primeira edição de Os Pescadores (Lisboa, Aillaud e Bertrand, 1923), com uma dedicatória banal: «Ao ilustre escritor Ferreira de Castro, of. o / seu ador e aº / Raul Brandão / Dº [?] / 1923».  caricatura: Cruz Caldas

Saturday, November 17, 2012

incidentais #9 -- demasiado bom para ficar esquecido

Do «Pórtico» original de A Selva, datado de Fevereiro de 1930

*Parto-o em três: o primeiro fragmento será a reflexão sobre o efeito que a vivência na Amazónia (1911-1914) teve em si, fazendo jus a todo o romance.

*«É bem certo que conduzimos ao longo da vida muitos cadáveres de nós próprios.» -- assim se inicia este preâmbulo, remetendo ora para o pavor da criança afastada da aldeia natal e desterrada naquela brenha, ora para os traumas persistentes no agora escritor, que ali chegou menino e se fez homem antes de a idade e os documentos lhe certificarem a adultez: «A minha vida tem andado cheia dêste pesadelo. Esqueço-me de mim, mas não me esqueço da selva. Dominou-me com o seu mistério e com a sua soberania; não a evoco sem um estremecimento de pavor. Cá a tenho, cá a tenho a romper o optimismo com que procuro cobrir, para menor sofrimento, o pessimismo e a morbidez que ela me deu.»

*Uma explicação possível para a eliminação deste trecho, demasiado bom para ser esquecido: a vontade de afastar o mais possível uma conotação autobiográfica.

*Elejo um segundo fragmento, que grosso modo persiste até hoje: «Eu devia êste livro a essa Amazonia longínqua e enigmática [...]», evocando em seguida os «anónimos» cearenses e maranhenses, os retirantes nordestinos que saíam em desespero da sua terra pobre e parca para um território desumano e desmesurado.

*Um último trecho, também retirado posteriormente: uma parte é transferida para o prefácio da 4.ª edição de Emigrantes; a outra alude à polémica que este romance já suscitara nos meios nativistas brasileiros. Castro espera que o mal-entendido se houvesse desvanecido: «As gentes do Ceará e do Maranhão, que trocam a sua terra pela Amazonia, não são menos desgraçadas que os nossos camponeses, que trocam Portugal pelo Brasil.»

* Enganara-se: A Selva suscitaria ainda mais a fúria dos nacionalistas de vistas estreitas e prosápia incontinente, dos verde-amarelistas cretinos, como, na ocasião, os qualificou José Lins do Rego.

Friday, November 16, 2012

Neo-Realismo: contributo para dificultar um problema (4)

Será útil, antes de avançarmos com a nossa reflexão fundamentada, passar em revista alguns autores comunistas coevos, cujas opiniões sobre o significado da obra de Castro são por vezes divergentes. Apenas a importância fundadora do autor de A Selva parece colher o acordo entre aqueles que a quiseram registar.
Anarquismo e Neo-Realismo -- Ferreira de Castro nas Encruzilhadas do Século, Lisboa, Âncora Editora, 2002.