Wednesday, December 11, 2024

dos romances

«Mas a lâmpada de bolso, de alguém ainda sentado numa das popas, estoqueou de repente a obscuridade, abrindo um caminho de luz, estreito e oscilante, na terra que trepava do rio para a floresta, gretada na parte alta, que mal se via.» O Instinto Supremo (1968)

«Juvenal Gonçalves já o surpreendera, assim, de outras vezes.  Mas nunca, como agora, o emocionara tanto, fazendo-o reviver a sensação que deviam ter fruído, outrora, os descobridores, ao ver surgir o arquipélago. Até então, o Atlântico ainda era para os portugueses um elemento masculino, fero e enigmático.» Eternidade (1933)

«Os caules nus, quase negros, assimétricos, eram colunas de um templo bárbaro, em cuja cúpula transparente o sol ia tecendo prateada e fantasiosa malha. Por vezes, o tecido incorpóreo esfarrapava-se e descia, em fluidos caprichosos, até os galhos, formando pulseiras, ou até o chão, onde coagulava em jóias bizarras.» Emigrantes (1928)



Capa da 1.ª edição: Bernardo Marques (1933)


Tuesday, December 10, 2024

nas palavras dos outros

(Nogueira de Brito) «O escritor que deu ultimamente às letras portuguesas um formoso livro, "Emigrantes", é, antes de tudo, um emotivo severo, pautado, sem arremedos de sentimentalismos pueris, nem devaneios lânguidos de compressão de sentimento ou de ternura.» «Ferreira de Castro e a sua obra literária», Ferreira de Castro e a Sua Obra (1931)

(Jacinto do Prado Coelho) «Escritores de torre de marfim, ou então demoníacos, malditos. Outros, porém, fazem literatura possuídos da consciência de um dever para com o próximo, a escrita é para eles veículo de uma mensagem, obedecem a uma vocação que é simultaneamente literária e cívica, são, através da palavra, através da ficção, construtores de homens, pedagogos.» «"O Instinto Supremo": quando a ética se torna humanitária», In Memoriam de Ferreira de Castro (1976)

(Agustina Bessa Luís) «Um dia eu disse a Ferreira de Castro: "Venha ver a minha terra e a casa onde eu nasci." E ele foi sem rogos, porque o seu coração tem a debilidade dos lugares modestos onde se come o primeiro pão e se forma a alma de saudades esquivas e dolorosas.» Ferreira de Castro», Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro -- 1916-1966 (1967)

Thursday, December 05, 2024

dos «Pórticos»

«Foi numa peça de teatro, pobre massa embrionária, que colocámos pela primeira vez, tínhamos nós vinte e dois anos, a interrogação que constitui a trave mestra deste livro. Em França, em 1848, um homem, que havia sido republicano durante a Monarquia, tornara-se monárquico logo que a Segunda República alvorecera e disparara a combater esta e a defender aquela com os mesmos ardorosos modos com que antes fazia o inverso.» A Curva da Estrada (1950)

«Pequeno, dez, onze anos melancólicos e tímidos, subíamos ao cume da serra que padroa a casa onde nascemos e ali, entre urzes e pinheiros nos quedávamos a contemplar vizinhas terras. Sete quilómetros, apenas, havíamos percorrido do Mundo em que vivemos; o que hoje se ergue perto parecia-nos a nós distante, mas nós já sonhávamos ir muito mais longe ainda.» A Volta ao Mundo (1940-44)

«Os primeiros teares criaram-se, em já difusos e incontáveis dias, para a lã que produziam os rebanhos dos Hermínios. O homem trabalhava, então, no seu tugúrio, erguido nas faldas ou a meio da serra. No Inverno, quando os zagais se retiravam das soledades alpestres, os lobos desciam também e vinham rondar, famintos, a porta fechada do homem.» A Lã e a Neve (1947)

Wednesday, December 04, 2024

errâncias

«Tudo se apresenta moreno ou ocre. É uma cidade heráldica, palácio a seguir a palácio, brasões em todas as fachadas, residências dos grandes senhores que se afastaram do povo, criando um mundo só para eles, um mundo altivo, onde em concorrência de vaidade e de poderio, cada qual procurou construir melhor e mais ostensivamente.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63)

«De Hong-Kong, o navio, que, até ali, só fundeou nas extremidades dos continentes, despede, a toda a brida, para algumas ilhas do pacífico, ansioso de transpor o Panamá e em Nova Iorque lançar âncora, férreo ponto final em superficial capítulo. Assim é "A Volta ao Mundo colectiva", cruzeiro de luxo por mares distantes.» A Volta ao Mundo (1940-44) 

«Havia um recurso: ir lá. mas ir como? Os mapas afirmavam a existência do povo remoto; os guias dos caminhos-de-ferro negavam-na terminantemente. Nas agências de viagens, os funcionários, interrogados, olhavam-nos com reservas, não fosse estarmos a caçoar com eles... / Um dia, porém, resolvi abalar de Paris, convencido de que havia de chegar a Andorra.» «Andorra», Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-38)

Tuesday, December 03, 2024

dos romances

«Vendo-a adormecida, neutra, Cecília pareceu-lhe menos odiosa. Dir-se-ia que a sua vida era protegida pela sua própria incapacidade de defender-se. Em frente da cama, ele principiou a despir-se, por hábito. A luz do corredor, ao filtrar-se pela bandeira da porta, destacava da obscuridade o vulto de Cecília sob os lençóis. Repugnava-lhe estender-se ao lado da mulher.» A Tempestade (1940)

«Que diria Juca Tristão, que o tinha por esperto e exemplar, quando ele lhe aparecesse com três homens a menos no rebanho, que vinha pastoreando desde Fortaleza? E o Caetano, que ambicionara aquele passeio por conta do seringal e assistira, roído de inveja, à sua partida? Rir-se-iam dele... Quase dois contos atirados por água-abaixo!» A Selva (1930)

«No telhado antigo, com o pó dos tempos fixado em crostas esverdeadas que nenhuma chuva conseguia lavar, os pardais faziam o ninho na Primavera. Em baixo, entre as paredes e as covitas que as goteiras, em horas pluviosas, abriam no solo, vicejavam lírios, roseiras trepadoras e tenros pés de salsa que o irmão hortelão não se dispensava de cultivar.» A Missão (1954) 



Capa da 1.ª edição: vinheta de Roberto Nobre (1954)


Saturday, November 30, 2024

"Fala-me de ti, Juvenal" - teatro radiofónico

Teatro radiofónico, de Serena Cacchioli: Juvenal, personagem principal de Eternidade encontra-se com uma investigadora de literatura neste ano de 2024, estabelecendo um diálogo a propósito das questões eternas que o romance levanta.

Com Ana Maia e André Gago, aqui.



Friday, November 29, 2024

correspondências

(Jaime Brasil a Ferreira de Castro, 1926) «Meu caro Ferreira de Castro: // A sua conferência é na quinta-feira, 25, não é verdade? Peço-lhe que me indique o tema, para a anunciar. / Escusado será dizer que é preciso um resumo até à quarta-feira 24, para eu fazer tirar cópias para os jornais. // Disponha do / seu camarada / mtº at.º / Jaime Brasil //  Lx.ª, 15/2/926.» Cartas a Ferreira de Castro (2006) 

(Ferreira de Castro a Roberto Nobre, 1922) .../... «P.S. Propositadamente deixo para o Post Scriptum o assunto do Lab.º Ainda não foi possível arrecadar-lhes aqueles míseros 50$00. Eu não me descuido. Não é por si: -- é por mim... Abraços do Frias. JMF» .../... Correspondência (1922-1969) (1994)

(Reinaldo Ferreira / Repórter X a Ferreira de Castro e Mário Domingues, 1925) .../... «Levo um saco de impressões. Na falta de tempo que sempre [?] tenho de sintetizar a correspondência. / Vou ao Porto, onde estarei uns dias e dou depois uma saltada a Lisboa para vos abraçar. Escrevam-me para Iberia Film -- Edifício do Banco do Minho Porto. / Saudades ao Cristiano, Bettencourt, Reis etc. / Vosso // Reinaldo Ferreira» 100 Cartas a Ferreira de Castro (1992)*

Wednesday, November 27, 2024

dos romances

«Forçado a deter-se, ele regava, à esquerda e à direita, rudes pedras, velhos castanheiros, velhos cunhais, mas fazia-o alegremente e com o visível modo de quem leva pressa. Em seguida, voltava a correr no faro do seu dono. Cada vez o sentia mais perto e cada vez era maior o seu alvoroço. Por fim, lobrigou-o.» A Lã e a Neve (1947)

«A luz, ao entrar, varreu os pontos brancos que o ralo projectava ali, uns pontos brancos, aglomerados no jeito das cavidades dos favos e que constituíam a única luminosidade existente lá dentro quando a porta se encontrava fechada. / Dois bancos laterais corriam dum extremo a outro, no interior da furgoneta. Um homem levantou-se e começou a avançar em direcção à porta.» A Experiência (1954)

«-- Em Espanha janta-se sempre tarde de mais -- disse Soriano, em tom conciliador, assim que a criada saiu, depois de ter servido o café. -- É um horário absurdo o nosso. Quando estive emigrado na França e na Bélgica, é que dei conta disso. Nós desalinhamos a digestão da Europa, pois no momento em que os espanhóis começam a encher o estômago, já os outros povos estão a esvaziar o deles...» A Curva da Estrada (1950) 



Capa da 1.ª edição: Jorge Barradas (1947)


Tuesday, November 26, 2024

outras palavras

«A diabrura que pratiquei, desvaneceu-se no esquecimento; mas lembro-me, sim, que minha mãe, saindo do quinteiro e agarrando-me por um braço, castigou-me. Passava na estrada, enxada ao ombro, um homem alto, bigodes retorcidos festonando as faces trigueiras. Deteve-se, sorriu e disse: / -- Assim é que é, senhora Mariquinhas! Nessa idade é que eles se ensinam. / Odiei aquele homem.» [Memórias] (1931)

«Na luta alcançativa destes três Deuses apareceram Grandes, que às vezes esquecemos a sua qualidade de micróbios, para admirarmos as suas audácias na conquista do Querer, do Desejar, do Possuir. Mas os minusculamente pequenos, insignificantes ensimesmados, na sua estupenda quantidade numérica chegam a ser incomensuravelmente maiores que os Grandes...» Mas... (1921)