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Monday, July 21, 2025

dos romances

«["] Ele com a garganta tão fechada como se lhe tivessem posto solda, ele com vontade de estoirar os miolos, sabendo que Julieta estava por pouco -- e ele a comer, porque a luz ia já esmorecendo nos olhos dela e queria comprazê-la no momento da agonia. Agora, a cama estava suja pela presença duma porca, duma prostituta, que outro nome não merecia!"» A Tempestade (1940)

«Pus-me a trilhar a via enlameada e ia quase tranquilo sobre a minha sorte. A experiência colhida em dezassete anos de vida revolucionária ensinara-me a conhecer as ruas em que é pouco provável encontrar agentes de polícia durante as primeiras horas de uma greve.» O Intervalo (1936/1974)

«Se tivesse capital e pudesse mandar as pelecas directamente para Braga, até seria, talvez, melhor. Mas, assim, quem ganhava era o Sarzedas, repimpado em Montalegre, pois não tinha outro trabalho senão comprá-las e revendê-las, depois, no Porto, sabe-se lá por quanto cada uma!»  Terra Fria (1934) 

Friday, June 06, 2025

dos «Pórticos»

«Um vaporzito, com graciosidade de gaivota e calentura de de forno, largou de ao pé da "Kars-en-Nil" e, apitando aqui e ali, que o tráfego fluvial era grande em frente da cidade, começou a subir o rio sagrado.» A Tempestade (1940) 

«Soube que você tinha estado na Praça da Macarena, entre os jornalistas, quando do bombardeamento do "Colmado del Salvador"; que observou as principais fases da greve e trilhou grande parte da Andaluzia, para averiguar "como as coisas se passaram". Por tudo isso me dirijo a si, mandando-lhe estes cadernos onde narro uma parte da minha vida. Se me autorizar, outros irão depois, à medida que os for escrevendo.» O Intervalo (1936/1974)

«A nostalgia deve ter nascido numa ilha e só numa pequena ilha se compreende, integralmente, o subtil significado da distância. Essa sufocação que dá a terra sem continuidade, como se o aro líquido que a estrangula se viesse fechar também em volta da nossa garganta, desperta constantes rebeldias e constantes impotências, acorda mil sentimentos ignorados, remexe, tortura, cava fundo na alma até o momento de esta se submeter por falta de mais energias.»  Terra Fria (1934)

Tuesday, February 11, 2025

dos romances

«Três minutos depois da saída de Bernardo transpus também a porta. / Chovia. Uma chuvinha insistente, enervante, que pegara ao dealbar e nunca mais parara. Não havíamos contado com este elemento inoportuno que alterava os nervos e os espíritos. Os guardas-republicanos, graças à molinha, deviam estar mais ferozes.» O Intervalo (1936/1974)

«Como o carreiro avançasse, agora, por trecho plano, de urgueira tojo e carqueja, esporeou a besta e pô-la a trotar. Não, não estava certo! Andar esbaforido, de manhã à noite, sem resultado que se visse, só porque o haviam intrigado com o Iglésias e o galego não quisera negociar mais com ele!»  Terra Fria (1934)

«Ao fundo, cortando o declive, estendia-se a linha avermelhada dum valado, que cedia terreno e entrincheirava a multidão cerrada dos pinheiros adolescentes e mui viçosos -- a prole que os velhos não quiseram cobrir com as suas asas seculares.» Emigrantes (1928)

Friday, January 24, 2025

dos romances

«Desci na companhia do Bernardo de Sousa, delegado dos comunistas, meu amigo apesar das nossas divergências. As noites passadas em branco haviam tornado mais lívido o seu rosto de tuberculoso. Para o mesmo esconderijo nos encaminhámos, mas, a meio da escada, detive-me e deixei-o marchar sozinho. Eu tinha ainda de ir a casa do Rebelo, ensinar-lhe a fazer desaparecer o pequeno arsenal que lhe fora confiado.» O Intervalo (1936/1974)

«Para passar menos tempo junto dela, vagueara, que nem doido, pela cidade, depois do jantar até essa hora tardia. "Aquele corpo, que ele amara tanto, estivera deitado com outro homem, a realizar as mesmas porcarias que fazia com ele. Com outro? Quem sabia lá se com muitos mais! Com dois, já ele sabia.["]» A Tempestade (1940)

«Horácio estava junto de Idalina, também conhecida de "Piloto"; estavam sentados num dorso de rocha que emergia da terra, ao cabo das decrépitas e negrentas casas do Eiró, no cimo da vila. E tão atarefado parecia Horácio com as palavras que ia dizendo à rapariga, que não deu, sequer, pela chegada do cão.» A Lã e a Neve (1947)



capa da 1.ª edição, por Jorge Barradas



 

Friday, December 20, 2024

dos romances

«Quando os homens chegaram, enfim, ao cimo da declividade, lá de onde o céu era vasto e dir-se-ia mais claro, deram com enorme parede vegetal, quase sem espaço para os seus corpos nesse chão plano, que eles sabiam ser imenso e ali vinha desbordar.» O Instinto Supremo (1968)

«O sol, já quase horizontal, com seus raios a morrerem no gume das montanhas, recortava-lhe a figura, sobre a pileca. Nem alto, nem baixo, mas tão forte que o doutor Cardoso, cacique de Montalegre, vira-se em dificuldades para o livrar do serviço militar, as pernas, se se arqueassem mais, tocariam calcanhar com calcanhar sob o ventre do cavalo.» Terra Fria (1934)

«Em algumas fábricas, os operários tinham já regressado, cabeça tão baixa que nem a dele, "Lagarto", corcunda desde que se conhecia, havia cavado tal ninho entre os ombros. / Após estes desenganos, os membros do "Comité" resolveram separar-se. Combinámos, rapidamente, futuros enlaçamentos e, sacudido o Algodres que dormitava na cadeira, com as façoilas negras de barba, nos beiços um fio de baba e mais de vinte pontas de cigarros aos pés, largámos.» O Intervalo (1936/1974)

Monday, October 28, 2024

dos romances

«Pela falaceira do "Lagarto" soubemos, porém, que a parte central de Lisboa estava ocupada por densas forças; Chiado abaixo passavam, a todo o momento, camionetas transportando guardas-republicanos e, de quando em quando, descia a Avenida da Liberdade pesado tanque com atitude de anfíbio cauteloso.» O Intervalo (1936/1974)

«O gardunho tornara-se bicho raro e também não se matava todos os dias um texugo. E que se matasse! Já se sabia que os galegos pagavam mais -- e pele esticada e seca ficava guardadinha para eles. Se nem as de raposa escapavam! Levavam tudo! Desdenhadas, só as de cabrito e de vitela, tão baratuchas que um homem fartava-se de carregar com elas para poder ganhar uns tristes vinténs...» Terra Fria (1934)

«Era vulto apardaçado nos extremos, erguendo algures, para o céu, um mamilo vulcânico e deixando que a sua encosta central se doirasse, suavemente, na luz matutina. Visto de longe, a medrar, a medrar, parecia recém-nascido no mistério oceânico, para enlevo de olhos fatigados pelo monotonia marítima.» Eternidade (1933)


capa da 1.ª edição de Os Fragmentos (inclui O Intervalo)
desenho de João Abel Manta (1968)


Friday, October 25, 2024

dos «Pórticos»

«Meu amigo: // Há anos, o acaso reuniu-nos num hotel do Cairo e você, afectuoso sem grandes gestos, amável sem palavras farfalhantes, uma constante sombra de melancolia no sorriso e nos olhos, quis servir-me de piloto durante uma das minhas peregrinações na terra egípcia, já sua conhecida.» A Tempestade (1940)

«A FERREIRA DE CASTRO // Não o conheço pessoalmente, mas sei que o seu espírito se interessa por todos os grandes problemas da Humanidade e que assistiu a vários acontecimentos em que eu mesmo tomei parte.» O Intervalo (1936/1974)

«Nem eu sei quando nasceu no meu espírito este amor pelos povos minúsculos, pelas repúblicas em miniatura, por todos os que vivem isolados no planeta. / As pequenas ilhas, sobretudo, fascinam-me, porque permitem observar melhor o homem entregue a si próprio, fechado sobre si mesmo, e, simultaneamente, disperso no infinito, entre mar e céu, -- inconsciente até do labor psíquico por ele realizado perante o eterno limite.» Terra Fria (1934)

Tuesday, October 15, 2024

dos romances

I «Contra o seu costume, Albano viera tarde e entrara sem os cuidados tidos nas outras noites, quando queria abafar rumores; logo, porém, volvera às precauções de sempre. Era preciso que ela não desconfiasse! Cerrou, vagarosamente, a porta e, no velho bengaleiro, dependurou o chapéu. Na casa havia silêncio e nenhuma outra luz além da que ele acendera no corredor.» A Tempestade (1940)

I «As derradeiras notícias tivemo-las às dez da manhã. Trouxe-as o "Lagarto". Como havíamos previsto, a greve fora vencida. / O Governo, mestre no ofício de impor ordem à rua, na época em que os espíritos viviam em tumulto, de lés a lés do planeta, estrafegara a bicha, mal a sentira colear. De fora chegava um silêncio inquietante. Nem estoiro de bomba, taque-taque de metralhadora, nem ruído de veículos ou de patas de cavalo. Nada.» O Intervalo (1936/74)

I «Sobre a montada, subindo, devagar, a trilha pedregosa, Leonardo esmoía íntimas irritações. Não podia ser! Os galegos estragavam tudo, quer pagando quantos direitos os guardas-fiscais lhes exigiam, quer andando, na calada da noite, a fazer contrabando de peles. Ainda se aparecessem muitas de texugo e de tourão, em que os ganhos pingavam mais, sempre se poderia ir vivendo. Mas não.» Terra Fria (1934)



Capa da 1.ª edição, de Jorge Barradas (1934)


Tuesday, October 17, 2023

da arte de expor

«[A FERREIRA DE CASTRO/ Não o conheço pessoalmente, mas sei que o seu espírito se interessa por todos os grandes problemas da Humanidade e que assistiu a vários acontecimentos em que eu mesmo tomei parte. » do "Pórtico" de  O Intervalo (1936/1974) / «Meu amigo: / Há anos, o acaso reuniu-nos num hotel do Cairo e você, afectuoso, sem grandes gestos, amável, sem palavras farfalhantes, uma constante sombra de melancolia no sorriso e nos olhos, quis servir-me de piloto durante as minhas peregrinações na terra egípcia, já sua conhecida.» do pórtico de A Tempestade (1940) / «Nem eu sei quando nasceu no meu espírito este amor pelos povos minúsculos, pelas repúblicas em miniatura, por todos os que vivem isolados no planeta.» do "Pórtico" de Terra Fria (1934)

Thursday, January 17, 2013

incidentais # 15 -- revoluções, chuva, mais remoques de ontem & de hoje

(sobre o capítulo I de O Intervalo)

*incipit: «As derradeiras notícias tivemo-las às dez da manhã.»

* Uma homenagem (já por 1936) às gerações de anarquistas, anarco-sindicalistas e sindicalistas revolucionárias, a que ele pertenceu, e que atravessariam uma noite ainda mais cruel, porque mais solitária. (1)  A acção decorre no período da Ditadura Militar e da II República espanhola.


*Alexandre Novais, "o Século XX", operário (torneiro-mecânico), antigo secretário da CGT, marcado pela policia; também alter ego de Ferreira de Castro, como já escrevi. Para já, em primeiro capítulo, uma coincidência de idades e uma viuvez partilhada (em circunstâncias diferentes, embora).

*Fiasco grevista, unidade na acção entre anarco-sindicalistas e comunistas (o que historicamente sucedeu, todavia com desentendimentos graves) («Mas os políticos é que me estão cá atravessados! Eu bem dizia que isto de políticos não dava nada!...», vocifera o militante Francisco Soares, pela "traição" dos políticos e contra o sai-não-sai dos militares -- militares, que levaram 48 anos a fingir que saíam dos quartéis...

*No rescaldo da derrota, Novais e alguns companheiros estão refugiados na habitação do companheiro Francisco Soares  um ambiente opressivo num tugúrio operário -- descrito com a segurança de meia dúzia de pinceladas (como se está longe da exasperante minúcia naturalista das habitações dos bairros operários, à Abel Botelho...).

* O cinzento do céu, a chuva miudinha que dá cabo dos nervos perpassa por todo o capítulo, acentuando a angústia do momento de incerteza por que passam aqueles insurrectos: «[...] a chuvinha persistia, escurecendo o dia, agarrando-se aos sentimentos, tornando tudo viscoso.» /
«Até admiti ser devido à chuva, sobretudo à opressora luz soturna que ela criava à nossa volta, o aumento da minha turbação cada vez mais expectante.» ("Toda a natureza é escrava da luz", dirá ele numa entrevista a Álvaro Salema, em 1973...)

* Procurado pela polícia como um dos principais dirigente grevistas, é impedido por um companheiro de, em desespero, dirigir-se à morgue, onde jaz Maria, sua companheira, atingida pela polícia: «Tu não te pertences!», dizia-lhe Leontino, pequeno funcionário público:  e o protagonista, que assume em O Intervalo o papel de narrador, examina-se intimamente: «Não nos pertencíamos a nós, mas ao nosso ideal, aos espoliados, à Humanidade que sofria, à criação dum mundo novo, onde a justiça estivesse de pé, a colmeia vivesse em igualdade e o amor aplainasse a obra feita, durante um ror de séculos, por um construtor de abismos.»

* O Intervalo esteve para intitular-se  -- revelou Jaime Brasil nos anos quarenta-- «Luta de Classes», e ainda bem que não vingou, não faria jus à grandeza literária do autor. Mas eu percebo Brasil: anarquista escaldado e de couraça dura, queria mostrar aos polícias que teorizavam o neo-realismo que não haviam sido eles a descobrir a pólvora. Conhecendo bem o seu esquema mental, deveria estar avisado sobre a forma como encaravam a História e a verdade dos factos: simples pormenores que se apagam ou manipulam conforme as conveniências da acção...

(1) Nem de propósito, acabo de ler:
«O anarquismo foi objecto duma implacável repressão nas primeiras décvadas do séc. XX. Ao longo dos anos 20 e 30, milhares de anarquistas ou de supostos tais foram presos, deportados para sítios inóspitos, morto. Essa repressão fez-se com pretextos diversos -- vagas de atentados da legião vermelha e até da camioneta fantasma, o 3 de Fevereiro no Porto e em Lisboa, a revolta da Madeira, o encerramento dos sindicatos livres e o 18 de Janeiro de 1934, o atentado a Salazar, etc. / [...] / Evidentemente que isso não poderia deixar de ter fortes reflexos na actividade anarquista que ficou reduzida à sua expressão mínima, com um Comité Confederal clandestino que só muito esporadicamente reunia, e sem capacidade para publicar de forma continuada e regular jornais de propaganda.»  José Hipólito dos Santos, «A participação de libertários em movimentos para derrubar a ditadura salazarista», A Batalha # 252, Lisboa, Nov.-Dez. 2012, p. 3.

Friday, November 23, 2012

incidentais #10 - de como a propósito do pórtico de «A Tempestade» se fala em projectos adiados, numa bisavó, terminando com mais gravidade

(do «Pórtico» de A Tempestade, 1940)

* Já aqui se falou, e voltará a falar-se, da apresentação que Ferreira de Castro escreveu para abrir o seu romance malquisto. Essa má-vontade tem tanto de injusto para o livro, uma narrativa psicologista -- traço que esteve sempre presente na obra castriana, basta lembrar Eternidade --, como razão de ser. Só para recordar: O Intervalo, fragmento da projectada e nunca realizada «Biografia do Século XX» estava na gaveta, de onde saiu apenas em 1974, integrado precisamente n'Os Fragmentos; o seu desígnio como romancista chocava com o tempo que lhe era dado viver: Estado Novo, Guerra Civil de Espanha, II Guerra Mundial; para sobreviver, teve de dedicar-se à literatura de viagens; só no pós-guerra, com a abertura do regime, A Lã e a Neve pôde trazer à luz a arte do romance tal como ele a concebia. Para trás, este negregado A Tempestade, escrito com raiva [sic]. Adiante com as injustiças do criador para com a criação...


* Redigido sob a forma duma carta a um "amigo" médico que lhe servira de cicerone no Cairo (1935). Seguem-se, após referência à recém construída ponte de Kars-en-Nil , cinco parágrafos impressivos sobre o Egipto, território que já dera um capítulo a Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937): «Um vaporzito, com graciosidade de gaivota e calentura de forno, largou de ao pé da Kars-en-Nil, apitando aqui e ali, que o tráfego fluvial era grande em frente da cidade, começou a subir o rio sagrado.»

* As referências ao felá, recordaram-me esse mesmo capítulo dos Pequenos Mundos e de como já há décadas pensei em fazer a comparação com O Egipto de Eça de Queirós (em tempos propus-me realizar uma grande trabalho sobre este póstumo queirosiano; não passou de um estudo exíguo que prometia, e que acabei por não cumprir, generosamente publicado por Bernard Emery na sua Taíra).

*Essas referências de intenção social servem para lembrar o amigo --e também de justificação a si próprio e advertência mais ou menos velada ao leitor -- que fora prometido um livroque espelhasse os desígnios de emancipação humana que Castro adoptara para si como homem e escritor; e que uma conjuntura desfavorável impedia de concretizar (com efeito, O Intervalo será escrito em 1936, um ano depois dessa estada no país dos faraós). Promessa que não fora cumprida, interrompida pela viagem como forma de sustento e substituída (terminando com as palavras finalizadas em ida -- aliás, o nome duma bisavó brasileira que não conheci...) por ATempestade, para mágoa do autor, provavelmente comvencido de que o romance não estava à altura dos pergaminhos de quem escrevera Emigrantes, por exemplo: «Fico bastante pesaroso, creia, por saber que você, sempre tão atarefado, sempre à roda de gente que sofre, vai perder, por amizade para comigo, tempo a lê-lo-- tempo que poderia empregar melhor.» Desfecho que provocará o desagrado de Roberto Nobre, que, numa carta, lhe diz ter ele, Ferreira de Castro, inoculado o vírus da ideologia que perfilhou, e que nunca desaparecerá, mesmo que ele se decida a escrevr sobre os astros  celestes (ver Correspondência (1922-1969))

* Outro aspecto importante deste prólogo é o da concepção castriana do romance como documento de uma época, fonte para o futuro, crítico que era do género historiográfico então prevalecente, narrativa biográfica, política e institucional em que o povo (ontem, o terceiro estado) estava ausente. E com efeito, pesem as excepções, a história social só conheceria impulso decisivo após a afirmação da Escola dos Annales. Daí também um certo amor à filosofia e a ilusão (ou vontade dela) de que o conhecimento, de si, do outro, do Universo, pode modificar a essência do ser humano.

* Finalmente, alusão a um tema a que voltará dez anos mais tarde, em A Curva da Estrada: como à medida que vamos envelhecendo vamos também regredindo nas convicções: no romance, a questão política, o conservadorismo que a idade pode induzir; no pórtico de A Tempestade, o tema religioso, o escapismo do sobrenatural.

Wednesday, September 19, 2012

incidentais #4 -- "o Século Vinte" e pequeno exercício irrelevante de biobibliografia alternativa

do «Pórtico» de O Intervalo
* O protagonista escreve ao autor: Alexandre Novais, por alcunha "o Século XX", autodidacta, colaborador da imprensa obreirista legal e clandestina, antigo secretário da anarco-sindicalista C.G.T. É um operário de escol em que o período foi fértil (basta recordar um jornal como A Batalha). Pede-lhe que conte a sua história pessoal, que tem acompanhado a da centúria em que vive.

* Um projecto que ficou na gaveta, escrito entre 1934 e 1936. Impublicável (como só o foi em 1974...). O Intervalo permanecerá o único capítulo da «Biografia do Século XX», ideia que Castro acalentou nas décadas de 30, 40 e 50.

* Castro assume-se como «escritor farol» (A Epopeia do Trabalho, 1926), aquele que abre caminho, o que "ajuda a ver" (entrevista a José de Freitas, 1966).

* Se esta "biografia", este roman fleuve tivesse ido por diante, haveria A Tempestade? -- não creio.; A Lã e a Neve? -- quase de certeza; A Curva da Estrada? -- improvável, mas quem sabe; A Missão? -- curta novela, é possível, mas fora da série; A Experiência -- porque não?; As Maravilhas Artísticas do Mundo? -- tenderia a dizer que não, mas com o desígnio que lhe subjaz, talvez, embora menos avantajada nas suas mais de mil páginas...; O Instinto Supremo? -- talvez Castro fosse mais tentado a fugir à promessa de escrever um livro a propósito de Rondon; assim como não escreveu a biografia de Kropótkin que Martins Fontes lhe pedira, e para a qual ele chegou a coligir material...

* A verdade é que o «Pórtico» geral de Os Fragmentos, que acolhe O Intervalo é escrito a 16 de Julho de 1969 -- «dia resplandecente para o génio humano da nossa época» -- quando Neil Armstrong, Buzz Aldridge e Michael Collins partiram para a Lua. A mesma crença e a mesma preocupação testemunhal do progresso do homem e das ideias se mantém no fim da vida. Não por acaso ele persistiu (e levou avante a intenção, mesmo que postumamente) que este fragmento do que projectara fosse publicado.




Wednesday, February 29, 2012

Abd El-Krim e a História

A propósito da sangrenta Guerra do Rife, que opôs os insurrectos marroquinos, liderados por Abd El-Krim, contra os exércitos espanhol e francês, escreveu Ferreira de Castro, n'A Batalha:
«[...] a figura de Abd-el-Krim- chega a atingir um sentido epopeico e só não merece as páginas da História porque a História desde há muito está desonrada, porque a História é indigna dele.» (14 de Setembro de 1925).
Ecos da Semana -- A Arte, a Vida e a Sociedade, Lisboa, Centro de Estudos Libertários, 2004, p.67.

Para Ferreira de Castro, a desonra da História -- ou da historiografia, melhor diríamos -- tem que ver com a noção, consagrada na década seguinte pela revista Annales, de Marc Bloch e Lucien Febvre, que o registo do passado nunca poderia limitar-se à inventariação das dinastias, das batalhas, das grandes figuras, meras conjunturas das estruturas económica, social e das mentalidades de que aquelas emanavam. E é essa concepção da História que presidirá ao projecto gorado da «Biografia do Século XX» -- de que só se salvará o póstumo O Intervalo (incluído n'Os Fragmentos) ou n'As Maravilhas Artísticas do Mundo, apresentada como «A prodigiosa aventura do Homem através da Arte».
(também aqui)

Monday, March 15, 2010

Preconceito e orgulho em A Tempestade, de Ferreira de Castro (2)

O escritor tinha na gaveta uma obra ficcional cujo cenário era a grande insurreição anarco-sindicalista nos campos da Andaluzia e na cidade de Sevilha, em 1931, cujo surto inicial ele testemunhara como enviado especial de O Século. Trata-se de O Intervalo, escrito em 1936, e editado somente em 1974, inserido em Os Fragmentos. Também uma peça de sua autoria, redigida a pedido de Robles Monteiro para o Teatro Nacional, e que abordava o tema da pena de morte, a propósito da recente condenação do alegado raptor e assassino do filho do piloto-aviador Charles Lindbergh, fora igualmente censurada por despacho governamental. Seria publicada cerca de sessenta anos depois, em 1994. Foi por esta razão que Castro se dedicou, «com um desalento imenso»(1) à literatura de viagens.
Ferreira de Castro, Os Fragmentos, 2.ª edição, Lisboa [1974], p. 78.

Nova Síntese, n.º 2-3, Porto, Campo das Letras, 2007/8, p. 49.

Friday, June 12, 2009

Canções da Vendetta (2)

Afastado voluntariamente do jornalismo, a «profissão-socorro» que lhe permitia escrever os seus romances, Castro viu-se na situação de escritor profissional. Com alguns livros na gaveta (o romance O Intervalo, a peça Sim, Uma Dúvida Basta), os direitos de autor e os proventos das traduções, que começavam a surgir em grande força, eram ainda insuficientes para lhe garantir a sobrevivência.
Apresentação de Canções da Córsega, 2.ª edição, Sintra, Câmara Municipal e Museu Ferreira de Castro, 1994.

Thursday, April 02, 2009

Ferreira de Castro e a II República Espanhola (1)

Incluído em Círculo Joaquina Dorado e Liberto Sarrau (3.º Ciclo), Lisboa, Centro de Estudos Libertários, 2007
Esta intervenção deveria intitular-se «Ferreira de Castro no dealbar da II República espanhola», uma vez que o que de substancial escreveu sobre a Espanha republicana, como romancista e como jornalista, se circunscreve aos três primeiros anos do novo regime. Sobre o período da Guerra Civil, por exemplo, para além de referências esparsas, de substancial só conheço uma brevíssima carta dirigida a Roberto Nobre, em 17 de Fevereiro de 1936, um dia depois da vitória da Frente Popular, em que o autor de Emigrantes diz apenas isto: «Estou radiante com as eleições espanholas.» (1) -- além do significativo epílogo de O Intervalo, de que se falará no final.
(1) Ferreira de CASTRO e Roberto NOBRE, Correspondência (1922-1969), edição de Ricardo António Alves, Lisboa, Editorial Notícias e Câmara Municipal de Sintra, 1994, p. 55.
(continua)

Sunday, May 20, 2007

Uma capa de João Abel Manta

Os Fragmentos
Lisboa, Guimarães & C.ª Editores [1974]