Saturday, June 10, 2006

A canção das águas, de Rebelo de Bettencourt

A CANÇÃO DAS ÁGUAS

A Assis Esperança e a Ferreira de Castro

Cantam as águas p'la ribeira fóra,
Cantam as águas numa voz magoada...
E eu não entendo esta canção molhada
Que me perturba e me enternece agora!

Pela ribeira vão cantando as águas,
Cantam as águas de maneira nova...
-- Quem foi o poeta que inventou a trova,
Que as águas cantam, repetindo as máguas?

Cantiga assim não tinha ouvido ainda,
Nem sei até se outra mais linda existe!
Por sêr tam linda é que a cantiga é triste!
-- Por sêr tâm triste é que a cantiga é linda!

As águas cantam de maneira nova...
Oiço uma voz nas águas da ribeira...
--Quem foi que disse pela vez primeira
A soluçante e perturbada trova?

Quem a inventou, tam magoada e calma,
E quem a disse pela vez primeira?
--Quem deu voz às águas da ribeira
E com a voz lhe deu tambem a alma?

Alma das águas sobre as águas indo,
Ó alma errante, qual o teu segredo?
--Oiço a cantiga de mistério e mêdo
E a sua dor vai dentro de mim caindo!

Dentro das águas chora a voz de alguem,
Chora uma voz errante e sem destino...
Em vão quero entendê-la, e nunca atino
Com o sentido que a cantiga tem!

Linda cantiga de misterio e dor,
Não sei tirar-te já do meu sentido!
-- Que estranhos ritmos que eu não tinha ouvido!
-- Que lindos versos que eu não sei compôr!

Quem te inventou, linda cantiga de água?
Quem te inventou assim tam linda e triste?
Em ti uma alma incompreendida existe,
Que eu bem na oiço em tua voz de mágoa!

Canção de dôr toda molhada em pranto,
Quem é que sabe o teu mistério fundo?
Parece até que vem dum outro mundo
A tua voz que me perturba tanto!

Vaga e distante esta canção molhada
Enche a minha alma de mistério e mêdo...
Cantiga errante, qual o teu segredo?
Quem é que chóra em tua voz magoada?

Pela ribeira vão cantando as águas,
Cantam as águas de maneira nova...
-- Quem foi o poeta que inventou a trova
Que a ságuas cantam, repetindo as máguas?

Rebelo de Bettencourt, Oceano Atlantico, Ponta Delgada, Tipografia Insular, 1934, pp. 13-16

No comments: