Tuesday, December 17, 2024

dos romances

«O sol, já quase horizontal, com seus raios a morrerem no gume das montanhas, recortava-lhe a figura, sobre a pileca. Nem alto, nem baixo, mas tão forte que o doutor Cardoso, cacique de Montalegre, vira-se em dificuldades para o livrar do serviço militar, as pernas, se se arqueassem mais, tocariam calcanhar com calcanhar sob o ventre do cavalo.» Terra Fria (1934)

«Em algumas fábricas, os operários tinham já regressado, cabeça tão baixa que nem a dele, "Lagarto", corcunda desde que se conhecia, havia cavado tal ninho entre os ombros. / Após estes desenganos, os membros do "Comité" resolveram separar-se. Combinámos, rapidamente, futuros enlaçamentos e, sacudido o Algodres que dormitava na cadeira, com as façoilas negras de barba, nos beiços um fio de baba e mais de vinte pontas de cigarros aos pés, largámos.» O Intervalo (1936/1974)

Monday, December 16, 2024

correspondências

(Reinaldo Ferreira (Repórter X) a Ferreira de Castro) «Lisboa 10 de Fevereiro de 1926. // Meu Caro Ferreira de Castro // Já sabes o que certa bela camaradagem urdiu, embora sem ousar fincar o dente, porque lhes faltam os queixais da verdade -- sobre a minha viagem à Rússia. Estou ensopando uma esponja nas provas e documentos para esfregar o rosto aos mal-intencionados. Para isso falta-me o teu testemunho.» ... /... 100 Cartas a Ferreira de Castro (2.ª ed., 2007)*


* 100 Cartas a Ferreira de Castro, 1992/2007 (edição de Ricardo António Alves) 

Thursday, December 12, 2024

outras palavras

«Sopra na telha vã, arrepia os colmados, passa e torna a vir -- vu-vu-vuuu -- como uma obsessão. A concha trouxe consigo toda a orquestra do mar. / Deve haver neve na Felgueira. E também cá para trás, para as bandas de S. Martinho, os caminhos devem estar cobertos de códão, estralejando sob as chancas de quem se meta pela noite negra.» «O Natal em Ossela» (1932/1974), Os Fragmentos 

«A diabrura que pratiquei, desvaneceu-se no esquecimento; mas lembro-me, sim, que minha mãe, saindo do quinteiro e agarrando-me por um braço, castigou-me. Passava na estrada, enxada ao ombro, um homem alto, bigodes retorcidos festonando as faces trigueiras. Deteve-se, sorriu e disse: / -- Assim é que é, senhora Mariquinhas! Nessa idade é que eles se ensinam. / Odiei aquele homem.» [Memórias] (1931)

«Na luta alcançativa destes três Deuses apareceram Grandes, que às vezes esquecemos a sua qualidade de micróbios, para admirarmos as suas audácias na conquista do Querer, do Desejar, do Possuir. Mas os minusculamente pequenos, insignificantes ensimesmados, na sua estupenda quantidade numérica chegam a ser incomensuravelmente maiores que os Grandes...» Mas... (1921)

Wednesday, December 11, 2024

dos romances

«Mas a lâmpada de bolso, de alguém ainda sentado numa das popas, estoqueou de repente a obscuridade, abrindo um caminho de luz, estreito e oscilante, na terra que trepava do rio para a floresta, gretada na parte alta, que mal se via.» O Instinto Supremo (1968)

«Juvenal Gonçalves já o surpreendera, assim, de outras vezes.  Mas nunca, como agora, o emocionara tanto, fazendo-o reviver a sensação que deviam ter fruído, outrora, os descobridores, ao ver surgir o arquipélago. Até então, o Atlântico ainda era para os portugueses um elemento masculino, fero e enigmático.» Eternidade (1933)

«Os caules nus, quase negros, assimétricos, eram colunas de um templo bárbaro, em cuja cúpula transparente o sol ia tecendo prateada e fantasiosa malha. Por vezes, o tecido incorpóreo esfarrapava-se e descia, em fluidos caprichosos, até os galhos, formando pulseiras, ou até o chão, onde coagulava em jóias bizarras.» Emigrantes (1928)



Capa da 1.ª edição: Bernardo Marques (1933)


Tuesday, December 10, 2024

nas palavras dos outros

(Nogueira de Brito) «O escritor que deu ultimamente às letras portuguesas um formoso livro, "Emigrantes", é, antes de tudo, um emotivo severo, pautado, sem arremedos de sentimentalismos pueris, nem devaneios lânguidos de compressão de sentimento ou de ternura.» «Ferreira de Castro e a sua obra literária», Ferreira de Castro e a Sua Obra (1931)

(Jacinto do Prado Coelho) «Escritores de torre de marfim, ou então demoníacos, malditos. Outros, porém, fazem literatura possuídos da consciência de um dever para com o próximo, a escrita é para eles veículo de uma mensagem, obedecem a uma vocação que é simultaneamente literária e cívica, são, através da palavra, através da ficção, construtores de homens, pedagogos.» «"O Instinto Supremo": quando a ética se torna humanitária», In Memoriam de Ferreira de Castro (1976)

(Agustina Bessa Luís) «Um dia eu disse a Ferreira de Castro: "Venha ver a minha terra e a casa onde eu nasci." E ele foi sem rogos, porque o seu coração tem a debilidade dos lugares modestos onde se come o primeiro pão e se forma a alma de saudades esquivas e dolorosas.» Ferreira de Castro», Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro -- 1916-1966 (1967)

Thursday, December 05, 2024

dos «Pórticos»

«Foi numa peça de teatro, pobre massa embrionária, que colocámos pela primeira vez, tínhamos nós vinte e dois anos, a interrogação que constitui a trave mestra deste livro. Em França, em 1848, um homem, que havia sido republicano durante a Monarquia, tornara-se monárquico logo que a Segunda República alvorecera e disparara a combater esta e a defender aquela com os mesmos ardorosos modos com que antes fazia o inverso.» A Curva da Estrada (1950)

«Pequeno, dez, onze anos melancólicos e tímidos, subíamos ao cume da serra que padroa a casa onde nascemos e ali, entre urzes e pinheiros nos quedávamos a contemplar vizinhas terras. Sete quilómetros, apenas, havíamos percorrido do Mundo em que vivemos; o que hoje se ergue perto parecia-nos a nós distante, mas nós já sonhávamos ir muito mais longe ainda.» A Volta ao Mundo (1940-44)

«Os primeiros teares criaram-se, em já difusos e incontáveis dias, para a lã que produziam os rebanhos dos Hermínios. O homem trabalhava, então, no seu tugúrio, erguido nas faldas ou a meio da serra. No Inverno, quando os zagais se retiravam das soledades alpestres, os lobos desciam também e vinham rondar, famintos, a porta fechada do homem.» A Lã e a Neve (1947)

Wednesday, December 04, 2024

errâncias

«Tudo se apresenta moreno ou ocre. É uma cidade heráldica, palácio a seguir a palácio, brasões em todas as fachadas, residências dos grandes senhores que se afastaram do povo, criando um mundo só para eles, um mundo altivo, onde em concorrência de vaidade e de poderio, cada qual procurou construir melhor e mais ostensivamente.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63)

«De Hong-Kong, o navio, que, até ali, só fundeou nas extremidades dos continentes, despede, a toda a brida, para algumas ilhas do pacífico, ansioso de transpor o Panamá e em Nova Iorque lançar âncora, férreo ponto final em superficial capítulo. Assim é "A Volta ao Mundo colectiva", cruzeiro de luxo por mares distantes.» A Volta ao Mundo (1940-44) 

«Havia um recurso: ir lá. mas ir como? Os mapas afirmavam a existência do povo remoto; os guias dos caminhos-de-ferro negavam-na terminantemente. Nas agências de viagens, os funcionários, interrogados, olhavam-nos com reservas, não fosse estarmos a caçoar com eles... / Um dia, porém, resolvi abalar de Paris, convencido de que havia de chegar a Andorra.» «Andorra», Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-38)

Tuesday, December 03, 2024

dos romances

«Vendo-a adormecida, neutra, Cecília pareceu-lhe menos odiosa. Dir-se-ia que a sua vida era protegida pela sua própria incapacidade de defender-se. Em frente da cama, ele principiou a despir-se, por hábito. A luz do corredor, ao filtrar-se pela bandeira da porta, destacava da obscuridade o vulto de Cecília sob os lençóis. Repugnava-lhe estender-se ao lado da mulher.» A Tempestade (1940)

«Que diria Juca Tristão, que o tinha por esperto e exemplar, quando ele lhe aparecesse com três homens a menos no rebanho, que vinha pastoreando desde Fortaleza? E o Caetano, que ambicionara aquele passeio por conta do seringal e assistira, roído de inveja, à sua partida? Rir-se-iam dele... Quase dois contos atirados por água-abaixo!» A Selva (1930)

«No telhado antigo, com o pó dos tempos fixado em crostas esverdeadas que nenhuma chuva conseguia lavar, os pardais faziam o ninho na Primavera. Em baixo, entre as paredes e as covitas que as goteiras, em horas pluviosas, abriam no solo, vicejavam lírios, roseiras trepadoras e tenros pés de salsa que o irmão hortelão não se dispensava de cultivar.» A Missão (1954) 



Capa da 1.ª edição: vinheta de Roberto Nobre (1954)