Friday, April 11, 2025

outras palavras

«Passa tanta gente, tanta! Passa tanta gente nos caminhos do planeta, tanta gente que conhecemos ao longo da vida! Uma mão que se apertou, umas palavras que se trocaram, uma amizade que aflorou, aqui, ali, a norte, a sul, neste e naquele país, neste e naquele continente.» «Delfim Guimarães» (1934)

«É esta a minha primeira recordação. E foram de ódio e de sofrimento as primeiras sensações que a vida me deu. Eu tinha quatro anos e meio. Aos seis fui para a escola. Era de inverno. Ia de chancas, friorento, enroupadito. Creio que foi minha mãe quem me acompanhou até meio-caminho. Não me lembro bem.» [Memórias] (1931)

Friday, April 04, 2025

as biografias de Jaime Brasil

Balzac «O fenómeno Balzac é um quebra-cabeças para quem conhece a vida do escritor e lhe lê as obras. Alguns críticos procuraram, em vão, conciliar umas com a outra; mas são inconciliáveis. Quem lhe traçasse a biografia romanceada poderia intitulá-la, à maneira das más novelas do seu tempo: Balzac ou o desdobramento da personalidadeBalzac -- escorço da complexa personalidade do autor de A Comédia Humana [1966]

Velázquez «Pórtico / Num dia do tórrido Estio madrileno de 1660, morreu Diego Velázquez, nascido sessenta e um anos antes no final da cálida Primavera sevilhana. Esse homem, frio e calmo, deixou uma obra pictórica capaz de apaixonar com ardor qauntos se interessam pelos assuntos de arte.» Velázquez (1960)

Leonardo «Florença e o Humanismo. / Assim como há pessoas nascidas com sorte e outras toda a vida malfadadas, certas cidades parece terem surgido sob um signo feliz. Na aparência, pouco as distingue dos outros aglomerados seus contemporâneos; no entanto, todas as graças do espírito se acumulam nelas.» Leonardo da Vinci e o Seu Tempo (1959)

Rodin «Os anos obscuros - 2A Génese do Génio" / No capítulo do seu recente livro "Du crétin au génie", consagrado à "Génese do génio", escreveo o Dr. Serge Voronov: As células germinais não morrem nunca, mas transmitem-se duma geração à outra.» Rodin (1944)

Zola «Ao terminar o seu livro Zola, em Outubro de 1931, Henrique Barbusse, depois de delinear os futuros rumos da literatura, acentuando-lhe o carácter social, escreveu: "Não basta proclamar que o amamos (a Zola) e que o deploramos. Não basta que a peregrinação que se realiza todos os anos à memória do Mestre de Médan se reduza a levar flores mortuárias e a recordar a meia-voz a importância que revestiram, no passado,  e a sua atitude cívica. ["]» Zola -- O Escritor e a Sua Época (1943 -- então com o título Vida e Obras de Zola e assinada por A. Luquet, aliás Jaime Brasil)

Victor Hugo «O Século XIX, que nasceu ao fragor das batalhas e sobre ruínas fumegantes, não foi belicoso nem destruidor. Pode considerar-se mesmo o mais sereno e construtivo período da história moderna. É que nele, mais do que em qualquer outro, se afirmou o triunfo pleno da inteligência criadora.» Victor Hugo (1940)

Diderot «O amaneirado, o precioso, o ridículo século XVIII, o século das perucas empoadas, das casacas de seda, das camisas de bofes, dos vestidos de anquinhas, dos sinais postiços no rosto -- foi um dos períodos mais fecundos da História» Diderot e a Sua Época (1940)

Ferreira de Castro «Ferreira de Castro é o mais representativo dos romancistas da nova geração literária em Portugal. É, sobretudo, o único dos seus escritores não-conformistas que conquistou o grande público. Tornou-se conhecido, fora das fronteiras do idioma em que escreve, graças ao sentido de humanidade e universalismo das suas obras.» Ferreira de Castro e a Sua Obra (1931)

Monday, March 24, 2025

dos romances

«Ao ver a expressão da irmã, Soriano julgou adivinhar nela uma discordância que se continha, por falta de tempo para discutir. / -- Há muitas excepções, é claro, e tu és uma delas... -- acrescentou ele a sorrir. / -- Não é isso o que me importa -- interrompeu Mercedes, pousando a chávena. -- O que me importa e irrita é essa mania que tu tens  de achar bom tudo quanto é estrangeiro e mau tudo quanto é espanhol. Mas não me admira nada; mesmo nada; todos os teus correligionários são assim...» A Curva da Estrada (1950)

«Trazia o cabelo sujo e desgrenhado; alguns fios partiam da densidade do todo e enroscavam-se-lhe na testa, como as gavinhas que saem de sob as folhas das videiras à procura dum corpo para se abraçarem. / Ao atingir a porta, baixou o olhar sobre os dois degraus que tinha de descer e hesitou; o polícia compreendeu que, de mãos algemadas atrás das costas, ele não podia valer-se delas se um dos pés falhasse e ficou a observá-lo, um momento.» A Experiência (1954)

«Vendo-o assim, "Piloto" hesitou um instante, enquanto agitava mais a cauda e tremuras de alegria lhe percorriam o corpo. Logo se decidiu. E, humilde, foi colocar o focinho sobre a coxa do amo, como era seu costume quando este o chamava, à hora da comida, nos dias em que os dois andavam pastoreando o gado, lá nos picarotos da serra.» A Lã e a Neve (1947)

Wednesday, March 19, 2025

Conversas sobre Ferreira de Castro: "Ferreira de Castro, lido por Jaime Brasil"

 



"Conversas sobre Ferreira de Castro" - Sexta-feira, 21 de Março, 18 horas, no Museu Ferreira de Castro.





Com tactilização (degustação táctil) dos seus livros:

















 

Jaime Brasil (1896-1966), grande jornalista cultural, repórter, escritor, biógrafo, polemista e divulgador, foi um dos mais próximos amigos de Ferreira de Castro, cujas actividade literária e vida pessoal acompanhou de perto durante mais de quarenta anos, até à sua morte.

Os mais velhos, ligados à literatura e aos livros, conhecem-no, pelo menos de nome; mas se já com os ficcionistas -- poetas, romancistas e todos os outros -- é difícil conseguir que se mantenham à tona neste tempo voraz, os ensaístas e afins estão destinados aos alfarrabistas e a um público muito especializado.

Jaime Brasil não foi apenas um oficiante das "artes e das letras" -- título da página que durante algumas décadas coordenou n'O Primeiro de Janeiro -- mas um homem de acção: militar insurrecto, voluntário na Guerra Civil de Espanha, anarquista, jornalista, sindicalista, oposicionista, preso político, homem generoso, porém complicado e por vezes truculento. 

Escritor de ideias de primeira água, nos vinte livros que publicou avulta o género biográfico: de Rodin a Leonardo e Velázquez, ou de Balzac a Ferreira de Castro, passando por Victor Hugo e Zola, entre outros, e também a polémica, a reportagem, ou os de sexualidade, numa perspectiva libertária e emancipação feminina.

De que modo ele leu Ferreira de Castro é o que tentaremos descobrir.



Tuesday, March 18, 2025

traduções

Emigrants: «Black and white, black and white, the black smooth and shinning and the white really snow-white, was a magpie with its tail nervously twitching, moving about among the pine needles and heather, in and out of sight, and from time to time it would rise in flight to the very top of the pine tree, carrying in its beak some small sprig or dry twig.» -- trad. Dorothy Ball, 1962

Émigrants: «Noire et blanche, noire et blanche, noir de jais et blanc de neige, la pie, la queue tremblotante, inquiète, sautillait parmi la ramille et la roquette, disparaissait, reparaissait, puis s'envolait en haut d'un pin, avec, au bec, quelque menue branchette.» -- trad. A. K. Valère, 1948

Emigrantes: «Negra y blanca, negra y blanca, el negro muy brillante y muy níveo el blanco, la picaza, de cola inquieta, trémula, picoteaba entre luz y tojo, escondiéndose aqui, levantándose alli, y, por fin, surgía de un vuello hasta la alta copa del pino, llevando en el pico hojarasca o pajillas.» -- trad. Eugenia Serrano, 1946

Emigranti: «Nera e bianca, nera e bianca, il nero lucentissimo e il bianco niveo, la gazza dalla coda irrequieta saltellava tra gli arbusti, ora nascondendosi ora riapparendo e alla fine spiccava il volo verso la cima alta del pino, portando nel becco un ramoscello secco.»  -- trad. A. R. Ferrarin, 1937

Emigrantes: «Negra y blanca, negra y blanca, el negro muy brillante y muy de nieve lo blanco, la urraca de cola trémula, inquieta, saltaba entre hojas y tojos, se esconde aquí, surge allá, y, por fin, levantaba el vuelo hasta la copa alta del pino, llevando en el pico un trozo de ramaje seco.»  -- trad. Luis Díaz Amado Herrero e Antonio Rodríguez de León, 1930 

Emigrantes«Preta e branca, preta e branca, o preto mui luzidio e muito níveo o branco, a pega, de cauda trémula, inquieta, saracoteava entre carumas e urgueiras, esconde ali, surge aqui, e por fim erguia voo até à copa alta do pinheiro, levando no bico ramo seco ou graveto.»  (1928)

Emigrantes está traduzido nos seguintes idiomas: alemão, castelhano (2), checo, croata, eslovaco, francês, húngaro, inglês, italiano, polaco e russo.

Tuesday, March 11, 2025

dos romances

«Mounier parou: / -- Bom dia! Então qual é hoje o trabalho? / Ele vinha a rememorar a influência maléfica  que uns quadris femininos podem ter, pelo facto de parecerem maiores do que efectivamente são quando o corpo está sentado, e perguntara aquilo distraidamente, muito mais por hábito de cortesia do que por força de curiosidade.» A Missão (1954)

«--É tudo uma malandragem! Ah, bom tempo em que havia relho e tronco! Então, esta canalha andava mesmo metida na ordem! Hoje, não se prende ninguém por dívidas e dizem que já não há escravos. E os outros? Os que perdem o que é seu? Vem um homem a fazer despesas, a pagar passagens e comedorias e até a emprestar dinheiro para eles deixarem às mulheres, e depois tem-se este resultado! Lhe parece bem? Ora diga, senhor Macedo: lhe parece bem?» A Selva (1930)

«["] Fora naquela mesma cama que ele tivera as núpcias com a sua primeira mulher, a santa que a morte levara, para desgraça dele. Fora ali, também, que a pobre morrera, lúcida, muito lúcida sempre preocupada, sempre a pensar no futuro dele e da filha, até o último instante. Ainda duas horas antes de expirar, obrigara-o a comer na sua frente, 'pois andava desconfiada de que, por causa dela, ele não comia.' Sofrera tanto com isso! ["]» A Tempestade (1940) 

Thursday, March 06, 2025

nas palavras do outros

(Jacinto do Prado Coelho, 1976) «Mais uma vez, na pena de Ferreira de Castro, a literatura apontou um caminho e exaltou grandes valores morais. / / O Instinto Supremo conta a história simples dum punhado de homens que se propõem, arriscando a vida, trazer uma tribo de índios ao seio da civilização. Persuadi-los a, de livre vontade, quebrar uma atitude hostil e deixar o estado selvagem.» «"O Instinto Supremo": quando a ética se torna humanitária», In Memoriam de Ferreira de Castro (1976)

(Agustina Bessa Luís, 1966) «Era um dia quente e sem brisa, o espírito não contava pois com o ligeiro sopro das ribeiras; apagavam-se os verdes ao sol de Agosto. No entanto, Ferreira de Castro, sem esmorecer de atenção, disse: "Valeu a pena vir aqui ver esta estradinha... É maravilhosa..." Todos os anos passados eu levara a percorrer a pequena estrada branca, de noite, com luares circundados da piedade humilde dos pinhais, de dia ouvindo o cachoar da água, o mistério da água correndo absorta, a água matemática dos campos da minha terra -- tudo se voltou para mim do seu sequestro na memória e no hábito. E eu vi que sim, a estrada era maravilhosa.» «Ferreira de Castro», Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro -- 1916/1966 (1967)

(Nogueira de Brito, 1928) «Os tipos, que a sua obra incarna, são exemplos da vida, e não há um gesto, um vinco de fisionomismo que não atinjam uma verdade irrefutável, um sentido de exactidão a que não está acondicionado o género novela, tão escassamente conseguido.» «Ferreira de Castro e a sua obra literária»Ferreira de Castro e a Sua Obra (1931)

Thursday, February 27, 2025

dos pórticos

«A nossa vida está pletórica de iniquidades, de misérias, de renúncias e de sofrimentos -- e nós, apesar disso, não queremos morrer. / Tu, meu irmão longínquo, que já mataste a morte, que já criaste um novo mundo sobre o mundo em que vivemos, que já tens uma outra noção do Homem e do Universo, dificilmente compreenderás como nos foi difícil viver assim.» Eternidade (1933)

«Mas só a memória responde. Com ela, agora e logo, ressuscita também um longínquo estado da sensibilidade, um pormenor que não teve valia momentânea, mas que ficou em relevo, com a sua luz própria e o seu verdadeiro aspecto.» A Selva (1930)

«Uns resignam-se logo à situação de elementos supérfluos, de indivíduos que excederam o número de seres que o são apenas no sofrimento, no vegetar fisiológico de uma existência condicionada por milhentas restrições. Curvam-se aos conceitos estabelecidos de há muito, aceitam por bom o que já estava enraizado quando eles chegaram e deixam-se ir assim, humildes, apagados, submissos, do berço ao túmulo -- a ver, pacientemente, a vida que vivem outros homens mais felizes.» Emigrantes (1928) 

Monday, February 24, 2025

dos romances

«Ao fundo, cortando o declive, estendia-se a linha avermelhada dum valado, que cedia terreno e entrincheirava a multidão cerrada dos pinheiros adolescentes e mui viçosos -- a prole que os velhos não quiseram cobrir com as suas asas seculares.» Emigrantes (1928)

«Só depois de dobadas várias décadas sobre o dia em que Zarco se apossara da terra ignorada, é que o Atlântico se tornara, para os lusos, ser feminino -- Atlântida legendária e de novo virgem, que eles iam deflorando a pouco e pouco, sob o impulso da ambição e da glória. / Mas, com o mar colérico ou tranquilo como agora, ventasse rijo ou corresse, à tona, ligeira brisa, o espectáculo seria sempre de surpreender e extasiar, após a viagem desoladora.» Eternidade (1933)

«Então novas lâmpadas se acenderam e os seus focos inquiridores foram riscando o grande emaranhado, onde os grossos fios de lianas cosiam, uns aos outros, arbustos, plantas, árvores, e os velhos troncos de pele esbranquiçada pareciam, quando a luz por eles subia, a modo de réptil transparente, de contornos imprecisos, querer assustar os homens com a lividez de cadáver que a sua casca, de súbito, tomava.» O Instinto Supremo (1968)

Wednesday, February 19, 2025

errâncias

«Depois de exame feito a todos os programas que outros teceram, a todos eles renunciamos e estabelecemos programa próprio, sem compromisso algum com armadores, livres, completamente livres. Visitaremos, assim, os países que ilustram as viagens em redor do Orbe, organizadas por companhias de navegação, e também aqueles, de denso valor humano,, artístico e histórico, que nessas viagens nunca figuram.» A Volta ao Mundo (1940-44)

«Havia lido, não sei em que absurda gazeta, ser o bispo desta cidade quem dava o santo e a senha para se entrar na república patriarcal. Sondada, porém, aquela dignidade eclesiástica por Monsenhor Costa, velho emigrado português e director de uma das piscinas de Lourdes, a resposta foi negativa. Dirigimo-nos, então, à Compagnie du Midi e. finalmente, à Prefeitura. Nada! Para eles como para mim, Andorra só existia no mapa!» Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-38)

«-- É a marquesa X, surda e louca -- dizem-nos e nós temos dificuldade em vencer a súbita ideia de que se trata duma ressuscitada que está ali apenas para completar o ambiente  e que o seu vaivém soturno é uma forma de impaciência, enquanto ela espera que se reabra o túmulo.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63) 

Friday, February 14, 2025

correspondências

Ferreira de Castro a Roberto Nobre (1925) «S/c R. Dº Notícias 44-1º // Lisboa 23/3/925 // Meu caro Roberto: // Como vai V.? Louvo-lhe a coragem por uma tão grande ausência... / Noutra carta e mais de vagar hei-de increpá-lo por isso. V. não tem o direito de afastar-se assim do campo da luta. Enfim, falaremos mais pausadamente para outra vez.» .../... Correspondência (1922-1969) (1994)

Jaime Brasil a Ferreira de Castro (1926) .../... «Oxalá que a nobilíssima atitude expressa no manifesto, cujo original nos enviou, frutifique e que o grito soltado em prol do Direito e dos princípios da Humanidade encontre eco no coração e na inteligência daqueles a quem o acaso confiou a autoridade e o poder. / Creia meu caro consócio nos protestos de muita simpatia pessoal, com que lhe apresento, em nome desta Direcção, // Saudações muito cordiais / pelO SECRETÁRIO GERAL, / Jaime Brasil / Lisboa, 5 de março de 1926. / Ao Exm.º Snr. Ferreira de Castro» Cartas a Ferreira de Castro (2006)

Reinaldo Ferreira (Repórter X) a Ferreira de Castro (1926) .../... «Toda a gente sabe que a polícia de Espanha é das melhores informadas do mundo. A sua espionagem muito se assemelha a de Guepeau, de Moscow. Ela seguiu esta minha viagem. Tu sabes tão bem como eu, porque tiveste uma desagradável ocasião para isso. Peço-te que por carta contes o que leste na ficha que mostraram no comissariado de Madrid. / Teu camarada que muito te estima e admira // Reinaldo Ferreira»  100 Cartas a Ferreira de Castro (2.ª ed., 2007)

Tuesday, February 11, 2025

dos romances

«Três minutos depois da saída de Bernardo transpus também a porta. / Chovia. Uma chuvinha insistente, enervante, que pegara ao dealbar e nunca mais parara. Não havíamos contado com este elemento inoportuno que alterava os nervos e os espíritos. Os guardas-republicanos, graças à molinha, deviam estar mais ferozes.» O Intervalo (1936/1974)

«Como o carreiro avançasse, agora, por trecho plano, de urgueira tojo e carqueja, esporeou a besta e pô-la a trotar. Não, não estava certo! Andar esbaforido, de manhã à noite, sem resultado que se visse, só porque o haviam intrigado com o Iglésias e o galego não quisera negociar mais com ele!»  Terra Fria (1934)

«Ao fundo, cortando o declive, estendia-se a linha avermelhada dum valado, que cedia terreno e entrincheirava a multidão cerrada dos pinheiros adolescentes e mui viçosos -- a prole que os velhos não quiseram cobrir com as suas asas seculares.» Emigrantes (1928)

Thursday, February 06, 2025

errâncias

«Em Bayonne, deixei de estranhar a ignorância encontrada em Lisboa e no Bureau National du Tourisme, em Paris; ali, primeira grande porta dos Pirenéus, nada se sabia também sobre os caminhos que conduzem a Andorra... E em Lourdes, a mesma incerteza. Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-38)

«Sujeito está a quedar-se apenas dois dias onde desejaria demorar-se duas semanas e duas semanas onde onde lhe bastaria ficar dois dias apenas. E a menos que possa seu tempo perder, este viajante solitário verá, enervado, partir o navio único de sua conveniência, que não é, geralmente, o navio que ele tem direito a tomar.» A Volta ao Mundo (1940-44)

«Numa janela alta, vemos um rosto colado ao vidro. Num pátio, um vulto negro que se esgueira. Mais adiante, em sala de rés-do-chão, a figura escura e desgrenhada de mulher que se passeia incessantemente dum lado a outro, com as pupilas sempre fixas na parede para onde avança e de todo alheia a quem a segue cá de fora.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-1963) 

Monday, February 03, 2025

dos romances

«No topo da escada, esbatendo-se na penumbra, surgiu o abdome e logo o rosto avermelhado de Macedo, proprietário da "Flor da Amazónia": / -- Então, senhor Balbino? / -- Nada! / -- Sempre falou com o chefe da Polícia? / -- Falei com o secretário. / -- E que disse ele?» A Selva (1930) 

«O que estava para além, não se sabia; lendas e pressentimentos estabeleciam cortina espessa, que vinha das alturas do céu, onde se acendiam as luminárias orientadoras, e, golpeando a enorme massa líquida, descia até profundidades abissais, julgadas sem fim. Proa que aspirasse a rompê-la devia ser de caravela onde apenas gesticulassem heróis ou loucos, votados, por livre desejo, à morte.» Eternidade (1933)

«Vestiam os seus trinta e quatro anos feitos e vividos sempre ali, entre a agressividade dos elementos, um casaco e colete velhos, enodoados, e camisa sem gravata. O rosto mostrava faces crestadas, lábios grossos e os olhos pestanudos quase se ocultavam sob o boné de pala, que descia até meia-testa. Nos ombros, luzia manta cromática, das que se fabricavam em Barroso, e de um lado e outro do bucéfalo dançavam, ao sabor da marcha, as peles compradas nesse dia. Tinham as extremidades endurecidas e do centro, ainda viscoso, exalavam cheiro nauseante.» Terra Fria (1934)

Saturday, February 01, 2025

Wednesday, January 29, 2025

outras palavras

«Inventou-se então a prisão... E... Na sua mesquinhez os mesquinhos aureolaram os Grandes: -- Como um morganho colocando uma coroa de louros na cabeça dum leopardo. E o leopardo por bonomia deixar-se quietar. / A prisão é uma coroação de todos os tempos. Não se enjaula um verme mas os leões.» Mas... (1921) 

«Porquê, em vez de me proteger com a sua força, ele estimulava minha mãe a castigar-me ainda mais? Porque era ele tão mau e porque sorria vendo-me sofrer, se eu nunca lhe tinha feito mal? / É esta a minha primeira recordação. E foram de ódio e de sofrimento as primeiras sensações que a vida me deu. Eu tinha quatro anos e meio.» [Memórias] (1931)

«Mas a treva não deixa ver a neve. Traço branco, só o da estrada que golpeia a meia encosta, aqui pertinho, o grande fundo preto. Às vezes passa, veloz, um automóvel. Mal se distingue. O ru-ru do motor é rapidamente integrado na lúgubre barulheira geral. Parece uma lufada mais forte do vento que está carpindo, no vale inteiro, a sorte de não se sabe quem.» O Natal em Ossela (1932/1974)

Friday, January 24, 2025

dos romances

«Desci na companhia do Bernardo de Sousa, delegado dos comunistas, meu amigo apesar das nossas divergências. As noites passadas em branco haviam tornado mais lívido o seu rosto de tuberculoso. Para o mesmo esconderijo nos encaminhámos, mas, a meio da escada, detive-me e deixei-o marchar sozinho. Eu tinha ainda de ir a casa do Rebelo, ensinar-lhe a fazer desaparecer o pequeno arsenal que lhe fora confiado.» O Intervalo (1936/1974)

«Para passar menos tempo junto dela, vagueara, que nem doido, pela cidade, depois do jantar até essa hora tardia. "Aquele corpo, que ele amara tanto, estivera deitado com outro homem, a realizar as mesmas porcarias que fazia com ele. Com outro? Quem sabia lá se com muitos mais! Com dois, já ele sabia.["]» A Tempestade (1940)

«Horácio estava junto de Idalina, também conhecida de "Piloto"; estavam sentados num dorso de rocha que emergia da terra, ao cabo das decrépitas e negrentas casas do Eiró, no cima da vila. E tão atarefado parecia Horácio com as palavras que ia dizendo à rapariga, que não deu, sequer, pela chegada do cão.» A Lã e a Neve (1947)



capa da 1.ª edição, por Jorge Barradas



 

Thursday, January 23, 2025

nas palavras dos outros

(Agustina Bessa Luís) «O caminho branco com os lódãos enflorados de vinha, deu-lhe a atmosfera inteira desses lugares. E eu vi que só um homem que tivesse o talento de assumir a natureza das coisas, sem as alterar na sua originalidade, podia assim reconhecer a magnificência desse toucado dos violáceos festões de "português azul".» «Ferreira de Castro», Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro -- 1916/1966 (1967)

(Nogueira de Brito) «O que caracteriza a literatura de Ferreira de Castro é a incidência do bom gosto estético na observação filosófica dos factos e dos indivíduos, levada a um grau de conclusão e apuro exactos, que faltam à maioria dos escritores que trilharam o caminho por onde ele segue, sem um desvio, sem uma tergiversação, sem uma "falha".» «Ferreira de Castro e a sua obra literária» [1929], Ferreira de Castro e a Sua Obra (1931)

(Jacinto do Prado Coelho) «Ferreira de Castro -- quem o não sabe? -- pertenceu à segunda categoria. E O Instinto Supremo, sua última obra, confirmava naturalmente a clara, nobre vocação de escritor humanista. Do "Pórtico", em que o Autor se dirige a um velho amigo, se infere que o "romance" (talvez melhor "novela", apesar das suas dimensões) nasceu da convergência com o contacto pessoal com a Amazónia, ponto de partida d'A Selva, e da adesão profunda ao ideal humanitário que norteou Rondon e os seus sequazes na pacificação dos Índios do Brasil.» «"O Instinto Supremo": quando a ética se torna humanitária", In Memoriam de Ferreira de castro (1976)

Monday, January 20, 2025

dos pórticos

«Volto  as gavetas sobre a minha mesa de trabalho, como se nela virasse o açafate doméstico, contendo apenas as migalhas dos dias vividos, de que se aproveitam somente as aspirações e os sonhos. Sonhos e aspirações que continua vivos e ardentes e se realizarão inevitavelmente, mas talvez só quando eu já estiver morto.» Os Fragmentos -- Um Romance e Algumas Evocações (1974) 

«Meu amigo: / Um dia, já não sei há quantos anos desaparecido, mas certamente há mais de vinte, chegou, enfim, a mancheia de terra do longínquo seringal onde vivi; chegou numa caixita de papelão, que a viagem maltratou e eu conservo ainda, um pouco a modo de relíquia.» O Instinto Supremo (1968)

«Depois de havermos trilhado a velha Mesopotâmia, as suas estepes rechinando ao sol, que poeiras ardentes percorriam também e nos queimavam o rosto como enxames de faúlhas, depois de termos auscultado esses largos desertos de onde a nossa civilização lançou os primeiros clarões sobre um mundo espiritual ainda em trevas, voltámos a entrar nas salas de antiguidades orientais do Louvre, que tanto frequentáramos antes de partir.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63)

Monday, January 13, 2025

correspondências

(Jaime Brasil a Ferreira de Castro, 1926) «Meu prezado consócio: // Esta Direcção recebeu a sua carta de 1 do corrente e os documentos que a acompanhavam, que ficarão, conforme é seu desejo, depositados nos arquivos deste Sindicato. / Permita-me o meu caro consócio que o louve pela iniciativa que teve de confiar à nossa guarda esses documentos, que representam uma admirável prova de coragem moral do escol dos intelectuais portugueses.» .../... Cartas a Ferreira de Castro (2006)*

(Ferreira de Castro a Roberto Nobre, 1922) .../... «Bis -- P.S. -- Se você vir o Dias Sancho diga-lhe que [com] respeito à matéria da sua última carta estamos quase de acordo. Que a carta era mto interessante. / Abusando dos pedidos, o Frias diz-me aqui ao lado, que você deve puxar as orelhas ao Lister, filho, porque ele até hoje ainda não lhe escreveu. Isto se você o encontrar, é lógico... // JMF» Correspondência (1922-1969) (1992)

(Reinaldo Ferreira (Repórter X) a Ferreira de Castro) «Lisboa 10 de Fevereiro de 1926. // Meu Caro Ferreira de Castro // Já sabes o que certa bela camaradagem urdiu, embora sem ousar fincar o dente, porque lhes faltam os queixais da verdade -- sobre a minha viagem à Rússia. Estou ensopando uma esponja nas provas e documentos para esfregar o rosto aos mal-intencionados. Para isso falta-me o teu testemunho.» ... /... 100 Cartas a Ferreira de Castro (2.ª ed., 2007)


* Jaime Brasil, Cartas a Ferreira de Castro (2006) - ed. Ricardo António Alves


 

Thursday, January 09, 2025

dos romances

«Em Espanha não só se come tarde, mas também se come demasiado. Provavelmente, o nosso carácter violento deve-se, em grande parte, ao excessivo trabalho que damos ao fígado... E é ver as nossas mulheres... Tão bonitas, tão sedutoras antes dos trinta anos! Mas, depois dos trinta, porque jantam tarde e se deitam, quase todas, em seguida ao jantar, começam a exibir umas ancas tão prósperas como se fossem mães de toda a Humanidade...» A Curva da Estrada (1950)

«Ao fundo, com uma árvore em frente, tão ramalhuda que quase a ocultava, erguia-se a capela, que, ligada embora ao edifício, avançava sobre o jardim, dando ao todo a forma dum grande L. / Ao entrar na cerca, Georges Mounier viu uma escada posta ao beiral. Junto dela, o «Bagatelle», homem de sete ofícios, pedreiro, pintor, até carpinteiro se fosse preciso, uma vez por outra trabalhando na Missão, ia remexendo com o pincel a tinta branca coalhada no fundo duma lata.» A Missão (1954)

«Avançava cautelosamente, inclinando a cabeça para não tocar no tecto. À medida que se acercava da claridade exterior, via-se que se tratava dum homem novo. O polícia sabia a sua idade exacta. Mas não era necessário ler o papel que o polícia trazia no bolso: Januário de Sousa, filho de Ana Maria e de pai incógnito, etc.; bastava deitar o rabo do olho à sua pele morena, lisa e macia que nem água passada a ferro na popa dos barcos, para se ver que ele não tinha mais de vinte anos, apesar de os seus olhos parecerem exaustos por não se sabia quantas madrugadas do princípio do Mundo.» A Experiência (1954) 

Wednesday, January 08, 2025

errâncias

«Interessado pela psicologia de todos os povos minúsculos, eu queria conhecer a vida e os costumes desse povo que quase ninguém conhecia -- nem mesmo aqueles que se vangloriavam de ter debruçado a sua curiosidade por todas as varandas do Mundo.» «Andorra», Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-38) 

«Toda a velha Espanha, pesada de orgulho, carregada de religião, de força e de prejuízos, nos legou aqui a síntese desse tempo. / A cidade é ainda habitada, mas não o parece. Raramente se vislumbra alguém nas ruas e aqueles que vivem nos seus remotos palácios dir-se-ão membros duma população de espectros.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63) 

«Há, também, "A volta individual ao Mundo". Companhias de navegação, para o efeito ajustadas, acordaram vender trânsito marítimo, com diminuídos preços, aos que pretendem rodear a esfera terrestre e voltar ao ponto de partida. Viagem menos cómoda do que a outra, quem a realiza torna-se servo não do muito ou pouco interesse do sítio visitado, mas da entrada e saída dos navios em que o seu bilhete lhe permite embarcar.» A Volta ao Mundo (1940-44)

Thursday, January 02, 2025

Ferreira de Castro n'A IDEIA

O último número de A Ideia -- Revista de Cultura Libertária 104/105/106, saído no final de 2024, sob a direcção (por imposição legal) e edição de António Cândido Franco, assinala os cinquenta anos da morte de Ferreira de Castro, ano que coincide com o meio século do 25 de Abril, a que o escritor ainda assistiu. Além da nota editorial, vale a pena ler o artigo de Bernard Emery, cujo título casa as duas efemérides: «Murcharam mesmo os cravos da esperança?" Eu tenho também o gosto de colaborar com um texto sobre «Jaime Brasil e Ferreira de Castro», que serviu de base à minha intervenção no Museu do Aljube em 2023.