Saturday, March 30, 2013

Uma referência de Orlando Ribeiro a A LÃ E A NEVE

imagem daqui
Orlando Ribeiro, todos o sabemos, foi o grande geógrafo português do século passado. O seu opus magnum -- ou, pelo menos, o que maior difusão teve, projectando o seu nome junto de um público mais vasto -- é Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1945). 
Nesta notável monografia, escrita também com mão de mestre -- e sem contar com a epígrafe inaugural, Miguel Torga e o poema «Mensagem» -- uma única referência literária ao longo das pouco menos de 200 páginas (em corpo pequeno) é A Lã e a Neve, referência obviamente inclusa em posterior edição já que esta obra-prima de Ferreira de Castro foi publicada em 1947:

«Aí [Covilhã] se localizam ainda as fábricas de lanifícios, quase todas que fazem fio, tecidos e tinturaria, acompanhando os processos do fabrico. Temos aqui um curioso exemplo da inércia na localização industrial. A matéria-prima vem das feiras do Alentejo e da importação da Austrália e da África do Sul, sendo cada vez maior o emprego de fibras sintéticas; a energia não é mais fornecida pelas torrentes da montanha; persistem apenas a acumulação de capitais (em algumas famílias de origem judaica), a tradição da mão-de-obra (ver o excelente romance de Ferreira de Castro, A Lã e a Neve) e uma mentalidade industrial progressiva, pois que vários jovens se especializaram em escolas estrangeiras.»

Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1945), 7.ª ed., Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1998, p. 149.

Wednesday, March 27, 2013

incidentais #18 - O radical padre Mounier só levanta problemas

Por iniciativa própria, Mounier é recebido pelo Superior, para informá-lo que havia mandado o «Bagatelle» suspender a pintura da palavra MISSÃO no telhado: Breve encontro entre dois homens de fé e da Igreja, de 50 e 65 anos, respectivamente, em que a autoridade do segundo é posta em causa por um imperativo de consciência..
Ferreira de Castro dá-nos então, neste segundo andamento de A Missão, a timidez e mal-estar de Georges Mounier: " a sua voz parecia escorregar por um precipício"; "queria que aquela inexplicável dificuldade lhe desaparecesse da garganta"; "não encontrava o tom desejado"; ao mesmo tempo que o Superior, homem ponderado e experimentado, depara com a surpresa, tanto da atitude como do argumento ético que motivou a atitude do frade: assinalar o edifício pelo ar, para que fosse visto pelos bombadeiros alemães, salvaguardando-o assim, graças às convenções internacionais, equivaleria a denunciar o edifício semelhante (primitivamente um convento de freiras adaptado a fábrica que contribuía para o esforço de guerra francês), pondo em risco a vida dos operários e das famílias que viviam nas habitações em torno: «As mesmas letras que nos protegerem podem representar uma sentença de morte para os homens que ali trabalham.» Após o que (se) pergunta, retòricamente, se as vidas de pouco mais duma dezena de religiosos valerá mais do que as daqueles.
O instinto de conservação inato apanha o Superior em contrapé: : «A luz toldara-se e no bosque onde ele se extraviava não havia apenas uma sombra, mas diversas sombras, não havia uma só vereda, mas muitas veredas cruzadas.»; acrescendo o incómodo e a contrariedade de um radicalismo que lhe era antipático, detectado em Mounier.
Como escreveu João Palma-Ferreira (e cito de cor), Castro era exímio e destacava-se no panorama literário português de então em pôr-nos diante de situações dilemáticas, fazendo-nos, através das personagens, sopesar pró e contras.  E isto -- acrescento eu agora --, apesar de uma clara orientação ideológica,   é-nos dado sem maniqueísmo nem primário preto-e-branco -- antes com a a consistência de quem sabe que cada homem é vários, como eloquentemente já escrevera e mostrara no anterior A Curva da Estrada.
O Superior a decisão até ouvir a irmandade, reunida em capítulo.

Saturday, March 23, 2013

Da correspondência com Ferreira de Castro (3)

     No caso particular deste epistolário, reflectem-se as grandes tensões vividas no período por ele abrangido. A II Guerra Mundial e a ocupação de Paris, onde se encontrava Jaime Brasil; a Guerra Fria; o prenúncio do fim do Império. Em Portugal, o Estado Novo, as prisões e a censura; as dissensões do(s) anarquista(s) com os comunistas, por um lado e os republicanos, por outro, também as vemos aqui espelhadas; e na disputa cultural, a questão do neo-realismo surge igualmente de forma clara. Do ponto de vista literário, é deveras substancial a quantidade de informações que as cartas nos trazem; o mesmo se passando com a personalidade deste autor que se distinguiu como biógrafo do seu interlocutor, logo em 1931 -- polemista, jornalista e libertário, aspectos que referimos com um pouco mais de pormenor no estudo que posfacia esta edição.

Jaime Brasil, Cartas a Ferreira de Castro, apresentação, transcrição notas e posfácio de Ricardo António Alves, Sintra, Câmara municipal / Museu Ferreira de Castro e Instituto Português de Museus, 2006.

Thursday, March 14, 2013

A Selva como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (3)

De que forma poderemos enquadrar essa mundividência? Claramente através de um conjunto de ideias e de sensibilidades que dotara a totalidade da obra castriana de uma mensagem coerente e consistente de emancipação do Homem. Não se trata de um simples amálgama de sentimentos piedosos, vulgo «humanistas»; está para além disso, e tem uma designação bem definida na história das ideias políticas e sociais: chama-se anarquismo, e Ferreira de Castro foi um dos expoentes literários do século XX, em Portugal, dessa forma mais livre de encarar o mundo e a vida. Ela já aparece, ainda que inconscientemente, em Criminoso por Ambição (1916), através de uma pueril atmosfera de revolta e inadaptação do protagonista Simão Rafael dos Anjos (1), e é omnipresente, quase obsidiante no seu último livro, Os Fragmentos (1974), um volume que ele deixou cuidadosamente preparado para publicação.

(1) «Posfácio» a Emigrantes, edição comemorativa ilustrada por Júlio Pomar, Lisboa, Portugália Editora.

 Congresso Internacional A Selva 75 Anos -- Actas, Ossela, Centro de Estudos Ferreira de Castro, 2007.

Saturday, March 09, 2013

incidentais #17 - campo e cidade, sonho e realidade

[do cap. I de A Lã e a Neve, 1947]

* Incipit: «Logo que as cabras e as ovelhas entestaram à corte, o «Piloto» deu por findo o seu trabalho.»

* Regressado do serviço militar, cumprido no CIAAC de Cascais, Horácio, pastor de Manteigas, é farejado, encontrado, saudado e requestado pelo velho companheiro, que o surpreende com Idalina. Só para o cão ele não mudou; para a noiva e para os pais, há algo de diferente: abertos os olhos noutras paragens, a pobreza da existência torna-se-lhe inaceitável. Mudar de vida, mudar a vida, deixar o pastoreio nas faldas da serra e empregar-se na fábrica, mesmo que em Manteigas, ou, quem sabe, na Covilhã, surge para o protagonista do romance como a única oportunidade de alguma vez levantar a cabeça, de fugir da mísera mesquinhez que preenche os dias dos pais e dos outros como eles.

* A cidade como factor de mudança. Não há, nem poderia haver, um bucolismo palerma que se conformasse com a vida rudimentar aldeã. E Castro sabe-o como ninguém, pois foi dela que saiu, aos 12 anos incompletos -- para algo ainda mais opressivo. Mas, para que não haja confusões, o escritor não rejeita o campo -- pelo contrário --, senão a pobreza que lhe subjaz no Portugal dos anos quarenta.

* A cidade é também factor de estranhamento: quem de lá vem, mudou; quem ficou, sente a mudança, sem que sinta, por sua vez, a imobilidade da vida que leva. Tal será sempre um factor de tensão.

 * Aos planos do pastor atravessa-se um compromisso financeiro, um empréstimo tomado pelos pais ao antigo patrão, na sua ausência, por motivos de força maior, sendo o trabalho de Horácio o garante da  liquidação, haja ou não -- presume,-se nesta fase do romance -- trabalho nos lanifícios.

* Problemática muito castriana, a dicotomia entre sonho e realidade, o homem aprisionado ao atavismo cultural, aos compromissos que se tomam; e, como sempre, alguém de mais teres & haveres ou uma convenção social, ou ambos, exercem pressão sobre quem pouco ou nada tem.

* Temos, para já, um problema posto, que irá complexificar-se à medida que a narrativa avança. E que narrativa! -- um dos grandes romances do século XX português e uma das obras maiores de Ferreira de Castro, significativamente o seu segundo livro mais traduzido, à frente do celebrado Emigrantes e atrás, naturalmente, de A Selva.

* Mais uma nota para a mestria do estilo, para o cuidado trabalho sobre a linguagem. Eis as casas pobres de Manteigas no limiar da noite:

     «Tinham começado a descer a congosta. Era uma rua estreitíssima, que cheirava a burros, a porcos e a fumo de ramos verdes. Dela partiam outras tortuosas vielas, que terminavam em pátios ou dobravam em cotovelos, cruzando-se, avançando para sombrios recantos, numa sugestão de labirinto. As casas, negregosas, velhentas, colavam-se umas às outras, com a parte inferior de granito escurecido pelo tempo e a parte cimeira com folhas de zinco enferrujadas a revestirem as paredes de taipa, mais baratas do que as de pedra. Este e aquele casebre exibiam apodrecidas varandas de madeira e outros, mais raros, umas escadas exteriores, coroadas por um patamarzito quadrado, logradoiro do mulheredo nas horas de paleio com as vizinhas. Algumas das portas e janelas estavam abertas e, atrás delas, pairava a rúbida claridade do fogo que, lá dentro, cozinhava a ceia. Figuras de homens, mulheres e crianças, as suas caras tocadas pelo fulgor do lume, andavam no acanhado espaço doméstico, cirandavam numa confusão de movimentos humanos e de trapos dependurados.»