Thursday, October 31, 2024
dos romances
«Ouviam-se já os passos da criada no corredor e, logo que ela entrou na sala, Mercedes censurou-a: / -- Por mais que eu repita, há-de ser sempre isto! A comida nunca está pronta a horas! Jantamos sempre tarde. / Ramona não se justificou, mas, pelos seus modos, Soriano compreendeu que ela resmungava por dentro. E parecia que o silêncio e a imobilidade de Paco apoiavam e aumentavam a razão de Mercedes.» A Curva da Estrada (1950)
«A cauda ergueu-se num ápice, formando volta que nem cabo de guarda-chuva; a cabeça levantou-se também e nela luziram os olhitos até aí amortecidos. "Piloto" estugou o passo. O caminho estava cheio de tentações, de paragens obrigatórias, estabelecidas por todos os cães que passaram ali desde que Manteigas existia, desde há muitos séculos. A Lã e a Neve (1947)
«Começou a andar sobre a ponta dos sapatos, cada vez mais cauteloso. Cecília já dormia quando ele chegou ao quarto. O seu primeiro ímpeto foi matá-la imediatamente, mas conteve-se. "Precisava de certificar-se com os seus próprios olhos e apanhá-los em flagrante, para que não o tomassem como um assassino vulgar".» A Tempestade (1940)
Tuesday, October 29, 2024
nas palavras dos outros
Jacinto do Prado Coelho (1976) «Há duas linhagens de escritores. Uns realizam-se comunicando as suas experiências, por vezes à beira do abismo, entregando-se aos poderes da imaginação e da linguagem, visando emoções puramente estéticas, alheios às consequências ético-sociais dos seus livros, arautos até dum individualismo exacerbado, revoltado, indiferentes ao labéu de inúteis ou à acusação de dissolventes.» .../... «"O Instinto Supremo": quando a ética se torna humanitária», In Memoriam de Ferreira de Castro (1976)
Agustina Bessa Luís (1966) «É numa página de um jornal que eu considero o mais estimável do Mundo, que vou escrever sobre Ferreira de Castro. Creio que nos meus primeiros passos colaborei aqui, não sei com que pequeno trecho todo arrebatado nas escarlatinas da mocidade, e já colérico e fantástico, que esse estilo tive-o sempre e sempre dele sofri.» .../... «Ferreira de Castro», Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro -- 1916-1966 (1967)
Nogueira de Brito (1928) «Ferreira de Castro, a quem acaba de ser prestada homenagem de admiração pelo seu talento é, na moderna geração literária, um dos valores mais curiosos pela orientação mental que tem inspirado a sua obra de reconstrução moral e psíquica.» .../... «Ferreira de Castro e a sua obra literária», Ferreira de Castro e a Sua Obra (1931)
Monday, October 28, 2024
dos romances
«Pela falaceira do "Lagarto" soubemos, porém, que a parte central de Lisboa estava ocupada por densas forças; Chiado abaixo passavam, a todo o momento, camionetas transportando guardas-republicanos e, de quando em quando, descia a Avenida da Liberdade pesado tanque com atitude de anfíbio cauteloso.» O Intervalo (1936/1974)
«O gardunho tornara-se bicho raro e também não se matava todos os dias um texugo. E que se matasse! Já se sabia que os galegos pagavam mais -- e pele esticada e seca ficava guardadinha para eles. Se nem as de raposa escapavam! Levavam tudo! Desdenhadas, só as de cabrito e de vitela, tão baratuchas que um homem fartava-se de carregar com elas para poder ganhar uns tristes vinténs...» Terra Fria (1934)
«Era vulto apardaçado nos extremos, erguendo algures, para o céu, um mamilo vulcânico e deixando que a sua encosta central se doirasse, suavemente, na luz matutina. Visto de longe, a medrar, a medrar, parecia recém-nascido no mistério oceânico, para enlevo de olhos fatigados pelo monotonia marítima.» Eternidade (1933)
Friday, October 25, 2024
dos «Pórticos»
«Meu amigo: // Há anos, o acaso reuniu-nos num hotel do Cairo e você, afectuoso sem grandes gestos, amável sem palavras farfalhantes, uma constante sombra de melancolia no sorriso e nos olhos, quis servir-me de piloto durante uma das minhas peregrinações na terra egípcia, já sua conhecida.» A Tempestade (1940)
«A FERREIRA DE CASTRO // Não o conheço pessoalmente, mas sei que o seu espírito se interessa por todos os grandes problemas da Humanidade e que assistiu a vários acontecimentos em que eu mesmo tomei parte.» O Intervalo (1936/1974)
«Nem eu sei quando nasceu no meu espírito este amor pelos povos minúsculos, pelas repúblicas em miniatura, por todos os que vivem isolados no planeta. / As pequenas ilhas, sobretudo, fascinam-me, porque permitem observar melhor o homem entregue a si próprio, fechado sobre si mesmo, e, simultaneamente, disperso no infinito, entre mar e céu, -- inconsciente até do labor psíquico por ele realizado perante o eterno limite.» Terra Fria (1934)
Thursday, October 24, 2024
errâncias
«Ao longo da vida temos topado muitos homens que fumaram ópio na China, tomaram vodka na Rússia, miraram o Vale dos Reis e subiram aos Andes; nenhum, impenitente vagamundo fosse ele, que nos baforasse a frase célebre: "Corri Seca e Meca e os Vales de Andorra". Nenhum que houvesse desejado ver como aquilo era e por que vivia quase independente, há tantos séculos já, um país tão minúsculo, quando outros maiores têm sido anexados.» «Andorra», Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-38)
«Chega-se aqui e fica-se surpreendido, já que Santilhana, ao contrário da regra, ultrapassa tudo quanto sobre ela se leu ou se ouviu. Tem-se uma profunda sensação de descoberta. / Cidade medieval, esquecida do tempo, sem graves mutilações, sem pedras injuriadas, dir-se-á recém-saída de colossal redoma, que lhe conservou todo o seu carácter antigo.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-1963)
«Mas da grande Índia mostra apenas Bombaím e Ceilão; da longa península de Malaca não se verá mais do que Singapura e da China imensa apenas a minúscula ilha de Hong-Kong. Outrora, ainda ele se aventurava a outras plagas. De ano para ano foi minguando, porém, as milhas da sua rota, que assim, passagens mais baratas, ajuntaria maior número de clientes.» A Volta ao Mundo (1940-1944)
Wednesday, October 23, 2024
dos romances
«Ter andado de Herodes para Pilatos, batendo todo o sertão do Ceará no recrutamento dos tabaréus receosos das febres amazonenses e tranquilos sobre o presente, porque há anos não havia secas, e afinal, depois de tanto trabalho, de tantas palavras e canseiras, fugirem-lhe nada menos de três!» A Selva (1930)
«O pinhal, todo de troncos grossos, casca áspera e gretada, adormecia austeramente no silêncio da paz primaveril. As suas pinhas dir-se-iam incopuladas ou corroídas por antídoto malthusianista, pois cá em baixo, no solo castanho e acidentado, nenhum pinheiro infante erguia para o céu os bracitos verdes.» Emigrantes (1928)
I. «Com os remos a chapejarem surdamente, cautelosos como os dos ladrões, nas proas um ruído fino, menor ainda que o dos botos cortando a tona da água, as canoas meteram a terra. A noite tropical, embora de estrelas acesas, mal permitia divisar as sombras que se erguiam dos bancos e, de terçado à cintura, machado ao ombro, desembarcavam umas após outras, todas hesitando sobre onde colocar os pés.» O Instinto Supremo (1968)
Tuesday, October 22, 2024
correspondências
(Raul Brandão a Ferreira de Castro) .../... «São raras efectivamente as pessoas que em Portugal estimam os meus livros, mas essas bastam-me, quando compreendem não o que vale a minha obra necessariamente imperfeita, mas o esforço que faço para arrancar alguns farrapos ao Sonho... // Creia-me sempre / ador e cama.da muito ogº [?] / Raul Brandão // Nespereira / Guimarães / 28 de Março 1922» 100 Cartas a Ferreira de Castro (1992 / 2007)
(Jaime Brasil a Ferreira de Castro e Eduardo Frias) .../... «E porque entendo bem o altivo grito de angústia, erguido nas primeiras páginas do livro, aqui vos dou, irmãmente, o abraço que traduz a minha admiração pelo vosso talento e a minha solidariedade nessa nobre revolta, contra o existente, o convencional, o medíocre. / Aceitai com os meus agradecimentos os protestos da muita admiração e estima pessoal do // cordialmente vosso / Jaime Brasil // 6.ª Feira-20-Junho [1924] Jaime Brasil, Cartas a Ferreira de Castro (2006)
(Ferreira de Castro a Roberto Nobre) .../... «Se você num momento de melancolia tiver desejo de escrever, escreva-me sobre o Algarve, as suas praias, os seus caminhos. Eu amo tanto a província que vivo nela por imaginação, vivo-a por impressões alheias, quando, como agora, não as posso viver por impressões próprias.» .../... Correspondência (1922-1969) (1994)
Monday, October 21, 2024
outras palavras
«O vale ampliou-se com a noite. Não se vê, lá ao fundo, a Felgueira, que de dia cerra o horizonte com a sua lomba enorme. Não se vêem os contrafortes de Santo António, bordados de pinheiros, nem os da Frágua, com as suas casuchas, nem os do Crasto, onde se ergue uma capelita branca. Sumiu-se tudo no negrume.» «O Natal em Ossela» (1932/1974) - Os Fragmentos
«Eu nasci a 24 de Maio de 1898. Mas, quando penso na minha idade, sinto-me sempre mais novo, sinto-me sempre beneficiado por quatro anos a menos. São quatro anos iguais a uma noite escuríssima, onde não é possível acender luz alguma. Não os viveu o meu espírito. Não estão na minha memória. Não me pertencem. Para a minha realidade espiritual eu tenho apenas 28 anos.» [Memórias] (1931)
«MAS... a prisão é a coroação É presa a terra como um globo flutuando num copo d'água. O mundo tem limites e toda a Glória ou toda Vontade ilimitada é um sarcasmo ao próprio mundo: -- Esboroa-se como um corpo num abismo, terminando onde o mundo finda.» Mas... (1921)
Friday, October 18, 2024
dos romances
Ele - I A Entrada. «A furgoneta deteve-se. Era nova, blindada, dum escuro brilhante e quase negro. A banda esquerda dir-se-ia feita duma só placa, inteiramente lisa; na outra havia um ralo, pequeno e redondo, que filtrava o ar de todas as más tentações, como os crivos, no fundo dos lavatórios, libertam a água suja de todos os elementos obstrutores.» A Experiência (1954)
I «Encontravam-se os três à mesa de jantar e o velho relógio de pêndulo marcava onze horas menos um quarto. Mercedes mostrava-se impaciente. / -- Ramona! -- gritou. -- Então o café? -- E dirigindo-se ao irmão e ao sobrinho: -- Esta mulher está cada vez pior!» A Curva da Estrada (1950)
I-Os Rebanhos. 1. «Logo que as cabras entestaram à corte, o "Piloto" deu por findo o seu trabalho. E antes mesmo de o pastor, que lhe aproveitava os serviços, se dirigir a casa, ele meteu ao extremo da vila. Rabo entre as pernas, focinho quase raspando a terra, ia triste, cismático, como perro vadio de estrada, descoroçoado da vida. Subitamente, porém, sorveu no ar algo que lhe era conhecido.» A Lã e a Neve (1947)
Wednesday, October 16, 2024
Tuesday, October 15, 2024
dos romances
I «Contra o seu costume, Albano viera tarde e entrara sem os cuidados tidos nas outras noites, quando queria abafar rumores; logo, porém, volvera às precauções de sempre. Era preciso que ela não desconfiasse! Cerrou, vagarosamente, a porta e, no velho bengaleiro, dependurou o chapéu. Na casa havia silêncio e nenhuma outra luz além da que ele acendera no corredor.» A Tempestade (1940)
I «As derradeiras notícias tivemo-las às dez da manhã. Trouxe-as o "Lagarto". Como havíamos previsto, a greve fora vencida. / O Governo, mestre no ofício de impor ordem à rua, na época em que os espíritos viviam em tumulto, de lés a lés do planeta, estrafegara a bicha, mal a sentira colear. De fora chegava um silêncio inquietante. Nem estoiro de bomba, taque-taque de metralhadora, nem ruído de veículos ou de patas de cavalo. Nada.» O Intervalo (1936/74)
I «Sobre a montada, subindo devagar a trilha pedregosa, Leonardo esmoía íntimas irritações. Não podia ser! Os galegos estragavam tudo, quer pagando quantos direitos os guardas-fiscais lhes exigiam, quer andando, na calada da noite, a fazer contrabando de peles. Ainda se aparecessem muitas de texugo e de tourão, em que os ganhos pingavam mais, sempre se poderia ir vivendo. Mas não.» Terra Fria (1934)
Thursday, October 10, 2024
dos «Pórticos»
«Nós não queremos morrer! Nós não queremos morrer! / Meu irmão longínquo que te perdes na hipótese, sobre o curso de todos os séculos vindouros, escuta! Escuta o nosso desespero de seres efémeros, esta ansiedade infinita que nos tortura há muitos milénios, este grito doloroso e impotente: Nós não queremos morrer!» Eternidade (1933)
«É bem certo que conduzimos ao longo da vida muitos cadáveres de nós próprios. Não somos hoje o total que fomos ontem, nem teremos àmanhã, integràlmente, o nosso mundo de agora. Eu sinto isto muitas vezes, num apelo ao meu "eu" de outrora, numa busca minuciosa entre os escombros do que fui e os pilares que ficaram de pé, a sustentar o que sou.» A Selva (1930)
«Os homens transitam do Norte para o Sul, de Leste para Oeste, de país para país, em busca de pão e de um futuro melhor. / Nascem por uma fatalidade biológica e quando, aberta a consciência, olham para a vida, verificam que só a alguns deles parece ser permitido o direito de viver.» Emigrantes (1928)
dos romances
I. »Manhã alta, toda vestida de azul, com folhos brancos que o mar tecia e esfarrapava ao sabor da ondulação, a sombra escortinada na linha do horizonte ia crescendo e definindo-se em caprichoso recorte. Mais do que a terra próxima, como queriam os passageiros e a ciência náutica afirmava, dir-se-ia nuvem estática na luminosidade imperante.» Eternidade (1933)
I. «Fato branco, engomado, luzidio, do melhor H. J. que teciam as fábricas inglesas, o senhor Balbino, com um chapéu de palha a envolver-lhe em sombra metade do corpo alto e seco, entrou na "Flor da Amazónia" mais rabioso do que nunca.» A Selva (1930)
I.I. «Preta e branca, preta e branca, o preto mui luzidio e muito níveo o branco, a pega, de cauda trémula, inquieta, saracoteava entre carumas e urgueiras, esconde ali, surge aqui, e por fim erguia voo até à copa alta do pinheiro, levando no bico ramo seco ou graveto.» Emigrantes (1928)
Wednesday, October 09, 2024
errâncias
«AS MARAVILHAS QUE O SOL NÃO VÊ. I RESSURREIÇÃO E GLÓRIA DE ALTAMIRA Erguida ao centro de verdes relvas, numa encosta suave, onde pastam vacas indolentes e voam corvos e pegas, Santilhana do Mar, a trinta quilómetros de Santander, é dos mais impressionantes burgos de toda a terra hispânica. Vendo-a, mal se compreende o seu débil renome e a pouca atenção que lhe prestam os arautos do turismo.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63)
«INÍCIO Concertaram-se, na nossa época, várias formas para se dar a volta ao Mundo. Em anos de remansosa paz, um navio americano abala de Nova Iorque e, de casco branco, mastros festonados de gaivotas, ladeia Américas e Áfricas, detém-se, aqui, ali, em três ou quatro cidades, e corta, depois, o Índico.» A Volta ao Mundo (1940-44)
correspondências
(Jaime Brasil a Ferreira de Castro e Eduardo Frias) «Meus caros Ferreira de Castro e Eduardo Frias // Recebi o vosso livro. Muito obrigado por vos terdes lembrado de mim. A mim q. tão afastado ando dos cenáculos literários e q. nas galés do jornalismo sou o último dos últimos, sensibilizou-me a vossa gentil manifestação de camaradagem espiritual.» .../... Jaime Brasil, Cartas a Ferreira de Castro (2006)
(Ferreira de Castro a Roberto Nobre) «Roberto Nobre, meu prezado amigo: / Recebi a sua carta, carta amável, generosa. / Como já o Assis lhe disse, gostei mto, mto, da capa. É um trabalho feito com garra -- mesmo sem alusão às garras do tigre... / E porque falei na capa, agradeço-lhe a oferta: -- oferta que eu desejo seja apenas uma moratória aos problemáticos fundos da empresa...» .../... Correspondência (1922-1969) (1994)
(Raul Brandão a Ferreira de Castro) «Exmo Senhor Ferreira de Castro / Muito obrigado pelo artigo que escreveu a meu respeito no último número da "A Hora" -- que tenho lido sempre com grande interesse, como leio tudo que é apaixonado e sincero.» .../... 100 Cartas a Ferreira de Castro (1992/2007)