Monday, September 29, 2025

outras palavras

«Nem da coruja que mora na igreja velha, escorropichadora de lâmpadas há um ror de anos, ele deixa hoje ouvir o sinistro uuu-gru-gru-gru. O vento domina tudo. O vale inteiro está transido pelo seu uivar. Quem ousa pôr a cabeça fora de porta numa noite destas, que é, ademais, para ser vivida em casa?» «O Natal em Ossela» (1972-1974)

«Mas, de tantas, só algumas saem da sombra onde jazem aqueles que conhecemos e se perderam de nós, levados pelas circunstâncias do destino. Só algumas, presentes ou ausentes, adquirem lugar próprio, convívio permanente com a nossa alma, criando uma amizade singular dentro do amor plural por toda a Humanidade.» «Delfim Guimarães» (1934) 

«Veio, depois, a inveja, a única que tive na minha vida: a de não ser igual aos outros, a de não possuir o seu à-vontade, a de não ter o sangue frio de que eles dispunham e graças ao qual brilhavam nas lições mais do que eu, embora soubessem muito menos.» [Memórias] (1931)]

Tuesday, September 23, 2025

errâncias

«E, contudo, estende-se, lá fora, um luar sortílego e um mar calmo, numa noite de maravilha propícia a fazer-nos sonhar com as mais belas coisas da vida. Mas o navio está cheio dessa inquietação que, hoje, tortura os homens, no planeta inteiro.» A Volta ao Mundo (1940-44)

«O carro desliza numa estrada branca, que ladeia, de quando em quando, o Ariège murmurante. A paisagem torna-se adusta. Começa a severidade das montanhas e os píncaros cobrem-se com grandes chapéus de bruma.» Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-38)

«Não lhe dizemos que a pressa nos percorre as veias e nos queima como o fogo dentro do rastilho, mas a nossa expressão deve trair-nos, porque ela logo nos adverte: / --É preciso fazê-lo. Demora alguns minutos. / Resignamo-nos, que remédio! Como podemos dar, com plena satisfação, o novo passo sobre o tempo, se nos acompanhar, seco e impertinente, o vício insatisfeito?» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63) 

Friday, September 19, 2025

nas palavras dos outros

Jacinto do Prado Coelho (1976): «São heróis de carne e osso, homens com as suas fraquezas, os seus desânimos, os seus impulsos instintivos, e cuja própria grandeza se insere na mediania do quotidiano. "Tudo parecia estranhamente natural, quotidiano, acto comum. Nimuendaju, Raimundo e Carolina subiam agora a ribanceira, tranquilamente, como se viessem duma pesca mediana, nem farta em capturas, nem gorda em decepções."» O Instinto Supremo: quando a ética se torna humanitária», In Memoriam de Ferreira de Castro (1976)

Agustina Bessa Luís (1966): «Depois distanciamo-nos noutros enlevos do género literário, noutras predicações e várzeas frias do conhecimento; mas a essência da voz humana que ressoa numa e noutra obra é a mesma. Vemos de súbito que ela se reconhece naquele encontro, num caminho poeirento e silencioso.» «Ferreira de Castro», Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro -- 1916/1966 (1967)

Nogueira de Brito (1928): «É uma obra feita de justeza, de equilíbrio, de calma e objectivação e dela fica a semente a lançar à terra em futuras colheitas de análise sentimental, em próximas depurações de psiquismos e de vibracionismo íntimo.» «Ferreira de Castro e a sua obra literária», Ferreira de Castro e a Sua Obra (1931)

Thursday, September 18, 2025

correspondências

(Ferreira de Castro a Roberto Nobre, 1925) .../... «O Anahory, a quem mostrei o livro p.ª crianças que V. ilustrou, ficou bem impressionado. Para sossego da sua sensibilidade, devo dizer-lhe que isto não foi devido à minha retórica ou à minha amizade por si -- mas pelo seu próprio valor e pelo Anahory -- cá para nós -- precisar de mais um desenhador... Logo tratarei com ele sobre preços.» .../... Correspondência (1922-1969) (1994)

(Jaime Brasil a Ferreira de Castro, 1929) «Meu caro Ferreira de Castro: // Deixe-me q. lhe apresente o nosso camarada Miodrag Garditch, q., como facilmente verá, é pessoa cultíssima e de inteligência lúcida. / Precisa de trabalhar e talvez o Ferreira de Castro possa dar-lhe alguma cousa a fazer p.ª «Civilização» .../... Cartas a Ferreira de Castro (2006)

(José Dias Sancho a Ferreira de Castro, 1927) .../... «Quero destacar, porém, a primeira novela, admirável, admirável, admirável, e a última. / Qualquer delas faria de per si a reputação de um autor. / Quanto ao título do livro, não gosto, por lembrar literatura de quiosque. E chamo-lhe a atenção para o lapso de alguns verbos que pedem complemento directo, virem seguidos de complemento indirecto. Um pouco de cuidado na revisão, remedeia isso. Fica a emenda para a 2.ª edição.» .../... 100 Cartas a Ferreira de Castro (1992/2007)

Wednesday, September 17, 2025

dos romances

«A mulher volvera à sua lembrança. Continuava a vê-la sentada ao sol, os pés sem tocar o chão, as pernas a badalar, a irem e virem sob o banco, como se estivessem num trapézio. Dir-se-ia que as suas pernas tinham, nessa hora, uma felicidade independente do tronco, todo um desejo de folgar que começava dos joelhos para baixo.» A Missão /1954)

«Idalina desviou ligeiramente os olhos para o cão e voltou a fixá-los na rocha, com aquele mesmo ar preocupado que tinha quando o bicho chegara. Houve um pequeno silêncio e Horácio volveu ao tom de voz anterior:» A Lã e a Neve (1947)

«Subitamente, porém, Januário deteve-se e ergueu a vista para o edifício que se levantava na sua frente. Os presos estavam lá, as mãos fechadas sobre as barras de ferro, mas ele mal os fixou. Os seus olhos percorreram a fachada clara, de janelas e portas emolduradas em cantaria branca, fresca, tudo lembrando construção recente, como se procurassem  alguma coisa que se não via com facilidade, alguma coisa que não se encontrava na frontaria do edifício.» A Experiência (1954) 

Tuesday, September 16, 2025

dos Pórticos

«Era o nosso interesse pelo próprio homem, pelo seu drama biológico, pela inquietude do seu espírito e pelo seu progresso num planeta sempre hostil, que nos impelia a nós, que amamos a luz, as cores da vida ao ar livre e, sobretudo, o futuro, para essas soturnas galerias do passado onde se expõem, em vários museus do Mundo e num ambiente de mausoléu, as esculturas mesopotâmicas e egípcias, com o seu quê de vultos de pesadelo, mágicos e imobilizados, na penumbra que os cerca.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63)

«Quando um final de infância agitado me levou ao Amazonas, a minha aldeia nativa, aqui, em Portugal, de tão distante e envolta na nostalgia, parecia-me uma ilusão. Só os carimbos das cartas que eu recebia me traziam a certeza de que não fora apenas sonho a minha vida até esse momento -- de que o berço existia, florido, atraente, para além da selva, para lá do Atlântico.» A Selva (1930)

«No corpo pequenino, os nossos olhos, que haviam de ficar sempre tristes, esqueciam-se horas a fio, a sonhar com a distância infinita, ante essa linha verde-azul do Oceano longínquo. Tudo quanto existia para lá da nossa vista nos parecia fabuloso e nos fascinava irremediavelmente.» A Volta ao Mundo (1940-44)

Wednesday, September 10, 2025

traduções - TERRA FRIA

Terre Froide - «Sur sa monture, qui gravissait lentement le chemin pierreux, Léonardo ressassait d'intimes préoccupations. La vie devenait impossible! Les Galiciens gâchaient le métier, tantôt en payant tous les droits exigés par les douaniers, tantôt en allant dans le silence de la nuit passer les peaux en contreband encore pour vivre, mais le putois devenait une bête rare et on ne tuait pas un blaireau tous les jours.» - trad. Louise Delapierre (1948)

Tierra Fría - «Sobre el rocín, subiendo, despacio, el sendero pedregoso, Leonardo rumiaba íntimas irritaciones. No podía ser! Los gallegos estropeaban todo, ya pagando cuantos arbitrios exigían los aduaneros, ya saliendo, en el secreto de la noche, a hacer contrabando de pieles. Si aparecieran muchas de tejón y de topo, en las que se sacaba mayor ganacia, aún se pdría ir viviendo. Pero no.» - trad. Eugenia Serrano (1946)

Terra Fria -  «Sobre a montada, subindo, devagar, a trilha pedregosa, Leonardo esmoía íntimas irritações. Não podia ser! Os galegos estragavam tudo, quer pagando quantos direitos os guardas-fiscais lhes exigiam, quer andando, na calada da noite, a fazer contrabando de peles. Ainda se aparecessem muitas de texugo e de tourão, em que os ganhos pingavam mais, sempre se poderia ir vivendo. Mas não.» Terra Fria (1934)

Terra Fria está traduzido em alemão, castelhano, checo, flamengo e francês.