Wednesday, January 29, 2025

outras palavras

«Inventou-se então a prisão... E... Na sua mesquinhez os mesquinhos aureolaram os Grandes: -- Como um morganho colocando uma coroa de louros na cabeça dum leopardo. E o leopardo por bonomia deixar-se quietar. / A prisão é uma coroação de todos os tempos. Não se enjaula um verme mas os leões.» Mas... (1921) 

«Porquê, em vez de me proteger com a sua força, ele estimulava minha mãe a castigar-me ainda mais? Porque era ele tão mau e porque sorria vendo-me sofrer, se eu nunca lhe tinha feito mal? / É esta a minha primeira recordação. E foram de ódio e de sofrimento as primeiras sensações que a vida me deu. Eu tinha quatro anos e meio.» [Memórias] (1931)

«Mas a treva não deixa ver a neve. Traço branco, só o da estrada que golpeia a meia encosta, aqui pertinho, o grande fundo preto. Às vezes passa, veloz, um automóvel. Mal se distingue. O ru-ru do motor é rapidamente integrado na lúgubre barulheira geral. Parece uma lufada mais forte do vento que está carpindo, no vale inteiro, a sorte de não se sabe quem.» O Natal em Ossela (1932/1974)

Friday, January 24, 2025

dos romances

«Desci na companhia do Bernardo de Sousa, delegado dos comunistas, meu amigo apesar das nossas divergências. As noites passadas em branco haviam tornado mais lívido o seu rosto de tuberculoso. Para o mesmo esconderijo nos encaminhámos, mas, a meio da escada, detive-me e deixei-o marchar sozinho. Eu tinha ainda de ir a casa do Rebelo, ensinar-lhe a fazer desaparecer o pequeno arsenal que lhe fora confiado.» O Intervalo (1936/1974)

«Para passar menos tempo junto dela, vagueara, que nem doido, pela cidade, depois do jantar até essa hora tardia. "Aquele corpo, que ele amara tanto, estivera deitado com outro homem, a realizar as mesmas porcarias que fazia com ele. Com outro? Quem sabia lá se com muitos mais! Com dois, já ele sabia.["]» A Tempestade (1940)

«Horácio estava junto de Idalina, também conhecida de "Piloto"; estavam sentados num dorso de rocha que emergia da terra, ao cabo das decrépitas e negrentas casas do Eiró, no cima da vila. E tão atarefado parecia Horácio com as palavras que ia dizendo à rapariga, que não deu, sequer, pela chegada do cão.» A Lã e a Neve (1947)



capa da 1.ª edição, por Jorge Barradas



 

Thursday, January 23, 2025

nas palavras dos outros

(Agustina Bessa Luís) «O caminho branco com os lódãos enflorados de vinha, deu-lhe a atmosfera inteira desses lugares. E eu vi que só um homem que tivesse o talento de assumir a natureza das coisas, sem as alterar na sua originalidade, podia assim reconhecer a magnificência desse toucado dos violáceos festões de "português azul".» «Ferreira de Castro», Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro -- 1916/1966 (1967)

(Nogueira de Brito) «O que caracteriza a literatura de Ferreira de Castro é a incidência do bom gosto estético na observação filosófica dos factos e dos indivíduos, levada a um grau de conclusão e apuro exactos, que faltam à maioria dos escritores que trilharam o caminho por onde ele segue, sem um desvio, sem uma tergiversação, sem uma "falha".» «Ferreira de Castro e a sua obra literária» [1929], Ferreira de Castro e a Sua Obra (1931)

(Jacinto do Prado Coelho) «Ferreira de Castro -- quem o não sabe? -- pertenceu à segunda categoria. E O Instinto Supremo, sua última obra, confirmava naturalmente a clara, nobre vocação de escritor humanista. Do "Pórtico", em que o Autor se dirige a um velho amigo, se infere que o "romance" (talvez melhor "novela", apesar das suas dimensões) nasceu da convergência com o contacto pessoal com a Amazónia, ponto de partida d'A Selva, e da adesão profunda ao ideal humanitário que norteou Rondon e os seus sequazes na pacificação dos Índios do Brasil.» «"O Instinto Supremo": quando a ética se torna humanitária", In Memoriam de Ferreira de castro (1976)

Monday, January 20, 2025

dos pórticos

«Volto  as gavetas sobre a minha mesa de trabalho, como se nela virasse o açafate doméstico, contendo apenas as migalhas dos dias vividos, de que se aproveitam somente as aspirações e os sonhos. Sonhos e aspirações que continua vivos e ardentes e se realizarão inevitavelmente, mas talvez só quando eu já estiver morto.» Os Fragmentos -- Um Romance e Algumas Evocações (1974) 

«Meu amigo: / Um dia, já não sei há quantos anos desaparecido, mas certamente há mais de vinte, chegou, enfim, a mancheia de terra do longínquo seringal onde vivi; chegou numa caixita de papelão, que a viagem maltratou e eu conservo ainda, um pouco a modo de relíquia.» O Instinto Supremo (1968)

«Depois de havermos trilhado a velha Mesopotâmia, as suas estepes rechinando ao sol, que poeiras ardentes percorriam também e nos queimavam o rosto como enxames de faúlhas, depois de termos auscultado esses largos desertos de onde a nossa civilização lançou os primeiros clarões sobre um mundo espiritual ainda em trevas, voltámos a entrar nas salas de antiguidades orientais do Louvre, que tanto frequentáramos antes de partir.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63)

Monday, January 13, 2025

correspondências

(Jaime Brasil a Ferreira de Castro, 1926) «Meu prezado consócio: // Esta Direcção recebeu a sua carta de 1 do corrente e os documentos que a acompanhavam, que ficarão, conforme é seu desejo, depositados nos arquivos deste Sindicato. / Permita-me o meu caro consócio que o louve pela iniciativa que teve de confiar à nossa guarda esses documentos, que representam uma admirável prova de coragem moral do escol dos intelectuais portugueses.» .../... Cartas a Ferreira de Castro (2006)*

(Ferreira de Castro a Roberto Nobre, 1922) .../... «Bis -- P.S. -- Se você vir o Dias Sancho diga-lhe que [com] respeito à matéria da sua última carta estamos quase de acordo. Que a carta era mto interessante. / Abusando dos pedidos, o Frias diz-me aqui ao lado, que você deve puxar as orelhas ao Lister, filho, porque ele até hoje ainda não lhe escreveu. Isto se você o encontrar, é lógico... // JMF» Correspondência (1922-1969) (1992)

(Reinaldo Ferreira (Repórter X) a Ferreira de Castro) «Lisboa 10 de Fevereiro de 1926. // Meu Caro Ferreira de Castro // Já sabes o que certa bela camaradagem urdiu, embora sem ousar fincar o dente, porque lhes faltam os queixais da verdade -- sobre a minha viagem à Rússia. Estou ensopando uma esponja nas provas e documentos para esfregar o rosto aos mal-intencionados. Para isso falta-me o teu testemunho.» ... /... 100 Cartas a Ferreira de Castro (2.ª ed., 2007)


* Jaime Brasil, Cartas a Ferreira de Castro (2006) - ed. Ricardo António Alves


 

Thursday, January 09, 2025

dos romances

«Em Espanha não só se come tarde, mas também se come demasiado. Provavelmente, o nosso carácter violento deve-se, em grande parte, ao excessivo trabalho que damos ao fígado... E é ver as nossas mulheres... Tão bonitas, tão sedutoras antes dos trinta anos! Mas, depois dos trinta, porque jantam tarde e se deitam, quase todas, em seguida ao jantar, começam a exibir umas ancas tão prósperas como se fossem mães de toda a Humanidade...» A Curva da Estrada (1950)

«Ao fundo, com uma árvore em frente, tão ramalhuda que quase a ocultava, erguia-se a capela, que, ligada embora ao edifício, avançava sobre o jardim, dando ao todo a forma dum grande L. / Ao entrar na cerca, Georges Mounier viu uma escada posta ao beiral. Junto dela, o «Bagatelle», homem de sete ofícios, pedreiro, pintor, até carpinteiro se fosse preciso, uma vez por outra trabalhando na Missão, ia remexendo com o pincel a tinta branca coalhada no fundo duma lata.» A Missão (1954)

«Avançava cautelosamente, inclinando a cabeça para não tocar no tecto. À medida que se acercava da claridade exterior, via-se que se tratava dum homem novo. O polícia sabia a sua idade exacta. Mas não era necessário ler o papel que o polícia trazia no bolso: Januário de Sousa, filho de Ana Maria e de pai incógnito, etc.; bastava deitar o rabo do olho à sua pele morena, lisa e macia que nem água passada a ferro na popa dos barcos, para se ver que ele não tinha mais de vinte anos, apesar de os seus olhos parecerem exaustos por não se sabia quantas madrugadas do princípio do Mundo.» A Experiência (1954) 

Wednesday, January 08, 2025

errâncias

«Interessado pela psicologia de todos os povos minúsculos, eu queria conhecer a vida e os costumes desse povo que quase ninguém conhecia -- nem mesmo aqueles que se vangloriavam de ter debruçado a sua curiosidade por todas as varandas do Mundo.» «Andorra», Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-38) 

«Toda a velha Espanha, pesada de orgulho, carregada de religião, de força e de prejuízos, nos legou aqui a síntese desse tempo. / A cidade é ainda habitada, mas não o parece. Raramente se vislumbra alguém nas ruas e aqueles que vivem nos seus remotos palácios dir-se-ão membros duma população de espectros.» As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63) 

«Há, também, "A volta individual ao Mundo". Companhias de navegação, para o efeito ajustadas, acordaram vender trânsito marítimo, com diminuídos preços, aos que pretendem rodear a esfera terrestre e voltar ao ponto de partida. Viagem menos cómoda do que a outra, quem a realiza torna-se servo não do muito ou pouco interesse do sítio visitado, mas da entrada e saída dos navios em que o seu bilhete lhe permite embarcar.» A Volta ao Mundo (1940-44)

Thursday, January 02, 2025

Ferreira de Castro n'A IDEIA

O último número de A Ideia -- Revista de Cultura Libertária 104/105/106, saído no final de 2024, sob a direcção (por imposição legal) e edição de António Cândido Franco, assinala os cinquenta anos da morte de Ferreira de Castro, ano que coincide com o meio século do 25 de Abril, a que o escritor ainda assistiu. Além da nota editorial, vale a pena ler o artigo de Bernard Emery, cujo título casa as duas efemérides: «Murcharam mesmo os cravos da esperança?" Eu tenho também o gosto de colaborar com um texto sobre «Jaime Brasil e Ferreira de Castro», que serviu de base à minha intervenção no Museu do Aljube em 2023.